Editorial

A minha mãe vive num primeiro andar nada pertinho do céu

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Damião Cunha Velho

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No sábado passado realizou-se, mais uma vez, uma “corrida de carros” em Ponte da Barca, numa zona residencial. Sim, numa zona residencial! Parece uma coisa do início do século passado. Para quem ali vive e assistiu, não apenas parece, é mesmo.

A minha mãe, com 79 anos, vive no primeiro andar de um prédio desta rua, que está rodeada por prédios em “U”. No apartamento de cima vivem duas senhoras que se levantam às 6 da manhã para irem trabalhar num hipermercado. Ao lado mora uma senhora com a filha, que fazem turnos noturnos: uma num lar de idosos e a outra numa fábrica. No mesmo piso vive um senhor idoso, muito debilitado por causa de uma leucemia. Tudo pessoas que, num sábado à noite, precisam de descansar e não de estar sujeitas ao barulho ensurdecedor dos carros e das motas a ziguezaguear até à meia-noite.

Nas dezenas de prédios que fazem parte daquele complexo habitacional vivem centenas de pessoas, em circunstâncias semelhantes às que vivem no prédio da minha mãe e que, certamente, estão pouco ou nada interessadas em ver um drift, a assistir a carros e motos a fazer derrapagens e a largar alcatrão. É claro que ninguém as obriga a ver, mas a ouvir e a inalar fumo de escape, não há como escapar.

Eu não tenho nada contra este tipo de eventos, nem contra quem os aprecia. Entendo, porém, que eles devem ser realizados em locais próprios, onde a segurança de quem participa e de quem assiste não seja posta em causa, e onde quem se desloca para o espetáculo o faça por vontade própria. Quem ali reside teve de gramar; quem ali foi podia ter sofrido um acidente.

Isto tem-se repetido todos os anos, sem qualquer respeito por quem ali mora. São muitas as pessoas que partilham desta indignação, apesar da contínua indiferença de quem governa a Pólis.

Um amigo meu estacionou o carro nos parques dessa rua dois dias antes de afixarem placas a avisar para retirarem os carros; caso contrário, seriam rebocados. Quando lhe disseram que andavam a pôr essas placas, ele não achou correto e não tirou o carro, como forma de protesto. Para mim, fez bem, por entender que nem sempre temos de obedecer quando os nossos direitos estão a ser postos em causa. E acredito que todos os que sentiram o mesmo que ele, se tivessem feito o que ele fez, esta competição não se teria realizado, por não existirem meios para rebocar dezenas de carros a tempo e horas.

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

Não é preciso esperarmos pelas eleições para mostrar o nosso descontentamento face a algo tão absurdo. A intervenção cívica não se deve restringir ao ato eleitoral. A desobediência civil é uma arma poderosa para fazer valer a opinião da maioria de forma pacífica e deve ser usada em circunstâncias como esta, de atropelo aos mais elementares direitos dos cidadãos e, principalmente, de atropelo grosseiro aos mais básicos deveres de salvaguarda dos cidadãos por parte daqueles que por eles foram eleitos.

Eventos e diversão todos precisamos, e são bem-vindos, mas não à custa do bem-estar de outros, neste caso, causando-lhes mesmo mal-estar. Afinal, viver numa zona residencial deveria ser sinónimo de tranquilidade, e não de ruído imposto por decisões absurdas, fruto de uma insensibilidade confrangedora face às necessidades da comunidade, tomadas por quem tem responsabilidades acrescidas em zelar pelo bem-estar da Comunidade!

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