Editorial

A Razão como Espectro – De Ferramenta para o Progresso a Instrumento de Manipulação

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A Razão, que deveria ser a nossa maior aliada na busca pela verdade e pelo entendimento do mundo, foi gradualmente cooptada pela modernidade e transformada numa ferramenta de manipulação.

O que outrora foi a capacidade humana de discernir a verdade e agir de forma ética, foi substituído por uma razão funcional, ligada à utilidade e ao poder. A Razão deixou de ser algo que nos liga à Verdade para se tornar uma máquina de fazer escolhas rápidas, voltadas para o imediato e o superficial. Esse desvirtuamento da Razão pode ser visto na evolução do conceito de “racionalidade”, que deixou de ser uma capacidade de refletir sobre os fundamentos da existência para se transformar numa ferramenta de controlo e manipulação, especialmente pelas ideologias e pelos interesses económicos e políticos. A Razão tornou-se um espectro do que deveria ser, uma sombra daquilo que os grandes pensadores da tradição propuseram. A razão moderna, voltada para o consumo e o poder, perdeu a profundidade e a capacidade de questionar as bases da nossa existência.

A transição mais evidente desta “razão instrumental” foi a Revolução Científica do século XVII, que, embora tenha trazido avanços inegáveis, também despojou a Razão da sua conexão com o humano, com a busca pela verdade transcendental. A filosofia cartesiana, ao fazer da dúvida metódica a base de todo conhecimento, foi crucial para estabelecer uma visão do mundo onde a Razão não persegue mais o sentido profundo da existência, mas apenas a utilidade prática e o controlo sobre a natureza. “Cogito, ergo sum”, disse Descartes, mas essa certeza do pensamento foi divorciada da moral e da espiritualidade, deixando a Razão como uma máquina calculista e neutra, sem a profundidade ética e até religiosa que antes guiava as ações humanas. Isso permitiu, mais tarde, que regimes e ideologias usassem a razão como justificativa para as suas ações, como se a “ciência” ou a “lógica” de um movimento político fosse suficiente para legitimar as suas ações, independentemente dos seus efeitos sobre a dignidade humana.

No campo político, a Razão foi capturada pelos discursos ideológicos que buscaram legitimar regimes autoritários, totalitários e genocidas. A utilização da “razão política” no contexto dos movimentos revolucionários do século XIX e XX, como o marxismo e o fascismo, é um exemplo claro de como a Razão foi transformada numa ferramenta de manipulação e morte. A Razão foi usada para convencer massas de que uma visão unilateral e distorcida da realidade — seja a luta de classes ou a supremacia de um Estado centralizado — era a única “racional” e “científica”. Ao colocar a Razão a serviço de uma ideologia política, a verdade foi distorcida, criando um mundo onde as ações e decisões humanas passaram a ser justificadas pela suposta “racionalidade” do projeto totalitário. A “razão” era apresentada como um guia absoluto para a criação de uma nova ordem social, onde as massas eram manipuladas para acreditar que os seus sacrifícios pessoais eram parte de um grande projeto racional.

O caso mais trágico da manipulação da Razão pode ser visto ao longo do século XX com os regimes comunistas, onde a “razão” científica foi utilizada para justificar o controlo absoluto sobre a vida humana. O exemplo do regime stalinista, que empregou a ciência e a razão para legitimar a repressão política, os gulags e a fome em massa, revela como a Razão pode ser pervertida quando se dissocia da moral e da busca pela verdade.

Hoje, numa sociedade de consumo, a razão funcional é amplificada pela tecnologia, usada, cada vez mais, para controlar os comportamentos humanos, não mais pela força, mas por meio da sedução e do prazer imediato. As redes sociais, a publicidade e os algoritmos que determinam o que vemos e compramos, embora tenham grandes vantagens, são exemplos de como a Razão, na sua forma mais fria e calculista, agora é usada para manipular as nossas escolhas, moldadas pela pressão social e pela incessante busca por gratificação instantânea.

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Como se não bastasse, a cultura deixou de ser um campo de reflexão e questionamento para se transformar num espectáculo. As grandes questões filosóficas foram substituídas por narrativas superficiais e pelo entretenimento. A cultura tornou-se um produto de consumo, algo que é digerido sem reflexão e sem consciência. No fundo, a cultura contemporânea já não procura iluminar a mente humana, mas apenas distrair. O saber foi esvaziado, e a reflexão profunda foi substituída por conteúdos rápidos, que apelam ao emocional sem promover o verdadeiro conhecimento. E assim, seguimos num ciclo de ilusões, onde a verdadeira sabedoria é abafada pelo barulho incessante da modernidade.

 

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