Editorial

AMÁLIA
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Joaquim Letria

Joaquim Letria

Professor Universitário

Se fosse viva, Amália Rodrigues completava esta semana 100 anos de idade. Conheci-a bem, gostava muito dela e apreciava, tal como hoje, a sua arte e a sua poesia.

As primeiras recordações que tenho de Amália datam da minha infância, nos meus seis ou oito anos de idade, no Café Luso, no Bairro Alto, onde um tio meu, malandreco, me levava ali a jantar, me apontava a Amália, de quem era amigo, e me dizia:

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

-Vai apalpar as maminhas daquela senhora e diz que fui eu que mandei. E eu ia…

 

Cresci a ouvir e a admirar Amália como a grande maioria dos portugueses. Rendia-me desde muito jovem à sua voz, ao seu êxito internacional, à sua simpatia e às suas gargalhadas.  E quando ela, anos mais tarde, agarrou no Alain Oulman, no David Mourão Ferreira e no Camões e recriou a nova canção portuguesa, aí rendi-me por completo.

Curioso como nos reencontrámos uma noite num café da Ericeira, onde eu passava férias, e  onde ela viera dum acampamento com amigos na vizinha Praia do Lisandro, e nos rimos e falámos do passado e do presente, comigo a duvidar que ela se lembrasse de mim mesmo depois de lhe contar a história das maminhas no Café Luso, mau grado a elegância com que ela aparentava recordar-se.

Encontrámo-nos uma vez em Paris, acidentalmente, onde ela tinha um namorado americano que era meu chefe na Associated Press. Fora dar um concerto no Olympia e Paris estava forrada a cartazes com o seu nome e o seu sorriso.

Tive longas discussões sobre Amália com gente que pensava que ela era uma figura do Salazarismo. Verdade que o regime se aproveitou dela, do seu prestígio internacional, do seu sucesso, verdade que ela nunca se manifestou publicamente quanto às suas posições políticas, mas nunca ninguém lhe pode apontar o dedo por ajudar Salazar e o seu regime. E os tempos, naquela época, eram outros. Clandestinamente, muito ela ajudou as famílias dos presos políticos.

Uma noite, no Estribo, do meu amigo Rodrigo, onde fora com Alfredo Marceneiro, falámos de Amália, brevemente que o ti Alfredo não gostava de concorrência, mas não esqueço o que lhe ouvi: – Pode não se gostar dela, mas não há outra a cantar assim.

Há pouco mais de trinta anos fui operado de urgência no hospital de Santa Maria, onde me safaram o coiro. Recordo-me de estar a dormitar no meu quarto e de ouvir umas vozes baixas a murmurarem. Abri os olhos e ali estava Amália a desejar-me as melhoras.

Levei-a a um programa meu na RTP2 quando ninguém a levava à televisão. E teve a humildade de aceitar. Um dia, em Tel Aviv, um chofer de praça pediu-me: “mande-me um disco de Amália. E eu mandei” . Atravessei Lisboa a pé, anonimamente, até ao Cemitério dos Prazeres no seu funeral, com lágrimas nos olhos. E hoje recordo-a respeitosamente aqui, roído de saudades.

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