BICADAS DO MEU APARO | Tibúrcio: um amigo de Manaus

Artur Soares

Escritor d’ Aldeia

Na minha adolescência, conheci um rapaz que sempre revelou falta de interesse pela escola. Demasiado alto para a idade que tinha, magro, com olhar de lince e de aspecto severo.

 

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

Ao anoitecer, fazia-se acompanhar, normalmente, dum canito de cor branco-sujo, de pêlos eriçados, focinho rectangularizado, de aspecto perigoso, pois rosnava facilmente. O Tibúrcio, seu dono, de gorra mal pousada na cabeça e rota, circulava pelos caminhos pedregosos da aldeia ao lado do canídeo, confiadamente. Um dia – e sem que desse por isso – este meu ex-condiscípulo desapareceu e soube meses depois que tinha emigrado para Manaus, Brasil.

 

Passaram-se já cerca de cinco décadas e, Manaus, pelos vistos, não mudou de nome, porque no restaurante onde me banqueteava com um bom naco de javali à lá rose e precedido de uma boa e bem cozinhada lagosta, dois cavalheiros, saudosamente falavam de Manaus, “choravam” por Manaus!

 

A carne de javali estava divinal e, o tinto alentejano que o regava estava á altura desse feio, mas saboroso bicho do monte!

 

Eu ouvia os meus “vizinhos de restaurante” e deixava-me lambuzar pelo repasto. Escutava sorridente os dois cavalheiros e várias vezes lhes dei a entender que gostava de “entrar em Manaus”, felicidade e saudade de ambos, testemunhada à mesa de um restaurante luxuoso, mas pouco frequentado.

 

Finalmente entrei na conversa e, com certa oportunidade, testemunhei-lhes que conheci um rapaz meu colega de escola, que um dia tinha emigrado para Manaus.

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– Mas então vocês deixaram Manaus? – perguntei.

– Deixamos Manaus – disse um – porque somos Minhotos e queremos morrer na nossa terra. Temos no Brasil filhos e netos que estão bem na vida, mas nós quisemos regressar. Somos daqui de perto, fizemos em tempos a quarta classe e emigramos, mas agora queremos morrer cá.

 

– Olhando bem para si – disse eu – e imaginando-o adolescente, parece-me que o conheci em tempos atrás.

– É possível. Eu sou o Tibúrcio, da Casa de Mamperra, não sei se o nome lhe diz alguma coisa. Acrescentou.

 

– É curioso! – disse-lhe sorrindo. Tu és o Tibúrcio e eu sou aquele que te deixava copiar o ditado e as contas de dividir na escola! Lembras-te?

– Você é um cara legal. Sempre foi cara legal!

 

E aos abraços, com gargalhadas sinceras e em franca cavaqueira animada pelo néctar fabuloso que nos aquecia as almas e os sovacos, dizia o Tibúrcio em simples português do Brasil:

 

– Vim de Manaus para ficar, mas venho doente. Já programei onde quero retardar a minha morte e vou acantonar-me numa luxuosa vivenda, com consultório médico, farmácia devidamente apetrechada para que os medicamentos estejam sempre ao meu dispor e me retardem as dores e maleitas, sala de operações com o melhor e o mais actual equipamento, médicos e enfermeiros particulares a ganharem o que pedirem, bem como pagar bem a pessoas desconhecidas de ambos os sexos, que me queiram visitar diariamente no leito.

 

– Mas, escuta bem Tibúrcio: é mais sensato recolher aos hospitais para seres tratado, uma vez que lá tens tudo! – aconselhei.

– Não, não vai ser assim. – disse. Vai ser como expliquei atrás. Eu sei que em Portugal os médicos não sobejam; os hospitais estão superlotados, pelas enfermarias e corredores; os doentes são números e números regressam a casa ou à morgue; há listas de espera para consultas e para operações; médicos-de-família é um milagre tê-los e, até para se ser enterrado, por vezes há problemas. Ora eu, que tenho dinheiro que baste, e que não me importo de pagar até ao último momento de vida, quero retardar a morte segundo a minha orientação e não como certos facínoras e raquíticos políticos querem: eutanaziar-me.

 

– Mas, Tibúrcio – interrompi. Porquê pagares a quem te venha visitar, se tens amigos e família?

– Não quero nem família nem amigos, junto do meu leito.

Para sofrer, já me basta a mim. Pretendo, por isso, duas espécies de pessoas para me darem alento e para isso pagar-lhes-ei.

Para me divertirem, pagarei o que for necessário ao patrono da emigração moderna, Passos Coelho; ao ilusionista eleitoral António Costa; ao humorista-seminarista Francisco Louça e, sobretudo, tudo farei para ter junto de mim José Sócrates, porque filosofa em qualquer canto e por ser capaz de convencer da sua seriedade, um semimorto como eu. De vez em quando requisitarei Cavaco Silva pelas atitudes que tomou e por outras que poucos entenderam.

Para além dos medicamentos a retardarem a minha morte, quero adquirir a força, o ânimo e a esperança de viver, com visitas especiais, pagas com ordenados iguais aos deputados portugueses, isto é, acima de vinte mil euros mensais. Pretendo por isso – uma vez que há muitos em Portugal – a visita de coxos e alguns estropiados, extáticos, cegos, centenários verdadeiros, mas em bom estado, outros de olhos gelados e indiferentes ao que observam, alguns de bocas babadas, de mãos pergaminhadas e trémulos, entre outros.

 

– Mas porquê esta gente? De que te servem, Tibúrcio?

– Os coxos e estropiados quero-os a dançar freneticamente em frente a mim, de forma que eu ria com os seus tombos; os extáticos, porque dependem sempre dálguém, consolar-me-ão ao ser-lhes provocadas grandes gargalhadas por cócegas aplicadas; os pergaminhados, babados e trémulos, irão divertir-me a tocar viola e a bater tambores e, as pessoas centenárias em bom estado, porque me darão a esperança de ser centenário também! Como vês – continuou o Tibúrcio – todos me são úteis e funcionam como que um travão na minha morte!

 

– Meu bom e excêntrico Tibúrcio – disse eu, em tom de despedida. – Acho bem que morras organizado, sossegado, alegre e o mais tarde possível. Espero ser contratado por ti, quando concluíres que sou centenário. Dar-te-ei a máxima força até ao último momento da tua vida e, prometo, no dia da tua morte, arranjar um bom grupo de carpideiras que te chorem bem alto ao redor do ataúde, uma vez que actualmente pouco se chora pelos mortos. E não esqueças, Tibúrcio: ao contratares os médicos e todos os outros que indicaste, inclui nesse grupo um bom psicólogo e um neurologista, competentes, experientes e, como não podia deixar de ser, que sejam centenários em bom estado.

                      

(O autor não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico).

                                                             

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