Carnaval – Entrudo 20023: Rituais de Passagem do Inverno para a Primavera

No livro “Os Ritos de Passagem” (1909) o antropólogo franco-holandês Arnold van Gennep dedica-se ao estudo de rituais a partir do vasto conjunto de dados etnográficos, identificando uma classe específica de ritos, que ele denomina ritos de passgame. (R. Arnault e V.A. Silva).

No território do Alto-Minho os trabalhos e os dias decorrem entre o ritual e o simbólico; o mítico e o histórico; a intimidade e a sociabilidade; a contenção e a catarse; a morte e a regeneração; a consoada e o merendeiro; a saudade e o encontro; o regular e o caos; a tradição e a pós modernidade; a memória e a fronteira .

O Entrudo é festa da abundância: “Ruge o pote e o prato”; “Haja vinho na caneca e porco na salgadeira”; “O Entrudo é comilão, se queres saber ao certo dá-me carne, vinho e pão”; “Alegria, alegrote, que está o rabo de porco no pote”.

Ainda se ouve: “No Carnaval ninguém leva a mal”.

Os festejos variados encerram rituais cósmicos, de inversão, de ostentação e fertilidade.

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REGENERAR O MUNDO

No dizer de Roger Caillois, a festa pretende restaurar o caos primordial, reactualizar as cosmogonias, teatralizando e mimando os gestos dos deuses e antepassados, porque o tempo mítico da desordem é um tempo criador, e necessariamente será também renovador do cosmos envelhecido. “A festa é assim celebrada no espaço-tempo do mito e assume a função de regenerar o mundo”.

As teses referentes à origem do Carnaval podem-se sintetizar em quatro: vegetalista, celta, greco-romana e medievalista.

As origens do Carnaval perdem-se no tempo profundo da pré-história e, naturalmente, nem todos os antropólogos aceitam as teses existentes (cf. COCHO):

 

CELTA

A tese celta leva-nos a registar alguns dados. Assim, E.Powell sublinha que os celtas acreditam em poderes mágicos que envolviam todos os aspetos da vida e do ambiente. O ano celta achava-se, certamente, dividido em duas estações, quente e fria, sendo os períodos de transição marcados por quatro festas: Samain, Beltaine, Lugnasad e Imbolc.

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No início da estação clara, Beltain, celebra-se a festa do deus Lug. Era a data das grandes assembleias druidas, em que se faziam fogueiras cerimoniais.

No inicio de Fevereiro tinha a festa da purificação do fim do Inverno, IMBOLC.

Antigamente explicavam-na como sendo o começo da lactação das ovelhas. A festividade foi substituída pela festa cristã de Santa Brígida, seguida pela Festa das Candeias, como explica E. Powell, H. Hubert, F. le Roux e J. Guyonvarch.

O investigador C. Gaignebet, autor do livro “Le Carnaval. Esais de mytologie populaire” (1974), sustenta:

“Há pois motivos para perguntar por que um conjunto de ritos indoeuropeus, as purificações de raxão em especial, no ínicio de Fevereiro, se conservam porventura inseridos na festa celta, especialmente Imbolc”.

Sem pretendermos fazer doutrina, não será que nos rituais do Carnaval, e mesmo nas comemorações do Enterro do Pai Velho, se conjugam reminiscências ancestrais dos Celtas? É de referir que no Lindoso há bastantes marcas celtas.

Aliás, seria aprofundar o bestiário místico da quadra carnavalesca, em que figuram o urso, o boi, a vaca, o porco, o galo e outros animais, uns considerados puros e outros impuros.

Segundo alguns autores, a palavra Carnaval procede do termo “carnavale”, e este, de expressão latina “carnem vale” (adeus carne), que significa retirar a carne, numa alusão ao carácter introdutório da quaresma cristã que se avizinha.

Caro Baroja introduz esta argumentação na tese sobre a origem do Carnaval Medieval. Ele mesmo demostrou a existência documental deste termo em Espanha, no século XV, concretamente no Dicionário Nebrija.

 

O ENTERRO DO PAI VELHO

O Carnaval é uma festa de todos, dos simples e dos pobres.

Uma boa oportunidade para os sisudos se extroverterem e para os grupos realizarem uma “catarse colectiva”, esquecendo o quotidiano que esmaga para reinar a alegria, com “rituais cósmicos, de inversão, ostentação e fertilidade”, reafirmando a identidade colectiva, conforme o antropólogo Joan Prat.

As festividades carnavalescas no Lindoso, aldeia do concelho da Ponte da Barca, celebrizada pela sua história e respectiva barragem premiada, revestem-se de particularidades, que lhes concedem características do Carnaval da tradição portuguesa.

Os octogenários, eles e elas, são pontos de referência obrigatória, para ajuizar se tudo está a ser preparado conforme a tradição. Existe uma sabedoria estratégica que passa pela escolha dos carros de tracção animal, do gado, pelo jogo das campainhas, pelos jugos, pelos enfeites, pelas cantigas, pelos tocadores de concertina, pelo horário dos cortejos, pelo trajecto definido, pelos bailes, pelas dádivas comestíveis durante os desfiles, pelos “barredouros”, pelos disfarces, pela choradeira na queima do Pai Velho, pelo testamento onde constam as ofertas do falecido, pelas referências de índole social e pela ocultação da escultura simbólica, como autêntico “churinga” de povos australianos.

As festividades do Enterro do Pai Velho, que “apesar de não ter festeiros, sempre tem festa”, são consideradas as mais típicas da povoação, e podemos dizer, únicas no norte do país.

Trata-se de uma vivência ancestral, que contribui expressivamente para a “coesão social da aldeia”, e para revigorar a identidade colectiva de uma povoação histórica e tradicional, que mantém vivências comunitárias.

O cortejo, para além de outros elementos, é constituído por carros adornados, “simbólicos e chiadouros”, puxados pelo melhor gado da aldeia, belamente engalanado, sendo um deles o do “Pai Velho”, e o outro o “Carro das Ervas”.

O largo junto do Castelo do Lindoso, mesmo ao lado do conjunto dos espigueiros e a eira comum, é o espaço privilegiado onde se desenrolam as importantes cerimónias anuais de transição, do ciclo do Inverno, frio e estéril, para o ciclo da Primavera, mais quente e fértil, e que fazem parte do “inconsciente colectivo”.

Se pretendermos estabelecer uma rota dos cerimoniais carnavalescos, para além do Enterro do Pai Velho, teríamos que participar, também, na Dança dos Carpinteiros, na freguesia de Gandra, e nas Mecadas de Verdoejo, do concelho de Valença.

Esta trilogia constitui o Entrudo do Alto-Minho.

 

A FOGUEIRA SIMBÓLICA

O grande investigador e filósofo das religiões J.Frazer, na sua notável obra “ RAMA DOURADA”, dedica um capítulo aos festivais ígneos. Afirma que em quase toda a Europa existe “a crença de que o fogo promove o crescimento dos meses, o bem-estar dos homens e dos animais, quer estimulando-os positivamente quer evitando os perigos e as calamidades”.

Refere que os celtas tinham festivais ígneos, queimando imagens cobertas de ervas, no meio das quais os druidas encerravam vítimas.

W.Mannhart  interpreta o costume de queimar as vítimas como uma cerimónia mágica com a intenção de assegurar a luz solar suficiente para as colheitas, levando-nos a concluir a importância agrária destes rituais.

È de sublinhar a grande festa “Beltaine, (fogo de Bel),no primeiro de Maio, em honra do Deus Lug, sob aparência da luz. Era a data das assembleias druidas, em que se faziam grandes fogueiras cerimoniais.

Parece-nos que a grande fogueira que no Lindoso queima o corpo empalhado do Pai Velho, os enfeites e as ervas, tem um fundo celta.

Aliás, é de acrescentar que inúmeros ritos de purificação pelo fogo, geralmente ritos de passagem, são característicos das comunidades agrárias, e simbolizam os incêndios dos campos que se adornam , depois, com um manto verde da natureza viva, de acordo com J.Chevalier.

O fogo é, acima de tudo, o motor de regeneração e simboliza a acção fecundante.

O Padre António Vieira salienta nos “ Sermões” que “o maior”, o mais nobre e o mais nobre escondido tesouro do universo é o quarto elemento, o fogo.

É crença popular que o fogo e o fumo têm a virtude de purificar os campos e os animais, e livrar os homens da influência dos maus espíritos.

 

A PALAVRA ENTRUDO

É oportuno referir que o Concílio de Benevento no século XI, fixou a Quarta-feira de Cinzas como limite para as festas de Carnaval.

Daí, a palavra Carnaval, vinda da expressão latina “carne vale”, que significa retirar a carne, numa alusão ao carácter introdutório da quaresma cristã que se avizinha.

A palavra entrudo deriva do latim “introitus” que significa entrada no período de contenção que é a designada quaresma cristã.

Ainda nos tempos de hoje se ouve dizer: Parece um entrudo, comentário quando uma pessoa é gorda; ou então parece uma quaresma, sublinhando uma pessoa que é magra.

Um entrudo também o pode ser uma pessoa vestida com roupa velha ou desajeitada.

Da etnografia do final do período do entrudo, e de transição para o tempo quaresmal, registamos: “Adeus entrudo, /Adeus meu entrudinho; / Até ao domingo de Páscoa, /Não comerei mais toucinho.”

 

Bibliografia:

BAROJA, Caro – El Carnaval, Madrid, Ed Taurus, 1983

COCHO, Frederico – O Carnaval em Galicia, Vigo, Edições Xerais, 1995.

FERRO, X R. Marino – “O Entroide ou Praceres da Carne”, “ Coruna, Edições do Castro, 2000.

FRAZER, J.G. – “La Rama Dourada”, undo da Cultura Económica de Espanha, 8ª ed., 1995.

HEERS, Jacques – Carnaval y Fiestas de Locos, Barcelona Edições Peninsula, 1988

VEIGA DE OLIVEIRA – Festividades cíclicas em Portugal, Lisboa. Publicações Dom Quixote, 1984.

IZQUIERDO, Paulino – Los origens de el carnaval, Ourense, Sociedade Cultural Albor, 1985.

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