A multidão cansada.
Estava um dia de grande calor, de ar abafado/pesado e o céu cinzento, sem nuvens à vista. Desejava-se até, que uma boa chuvada caísse, de molde a desanuviar e o ar ficar mais leve. Tal cinzentismo provocava um maior peso na cabeça, cansaço geral, mau estar e de diminuída respiração.
Surgiu a noite e, o corpo, no fim de um dia de trabalho – mais intelectual do que físico – parece ter passado por uma boa dose de pancadaria, devido ao “pesado ar” que se respirou.
É neste dia que numa casa sem “caixa-de-ar” e de construção rápida e barata, me preparo para descansar, na mira de angariação de novas forças para o cumprimento de mais um dia de trabalho, num patrão que nunca vi, o Estado Português.
Sentindo na espinha o ambiente de calor que me rodeava, agitava, e que tinha de vencer nessa noite, abri um pouco a janela do quarto para que as brisas de ar (mais fresco) proporcionassem uma noite melhor. Então, adormeci.
De braço dado comigo, sorrindo ambos por discordâncias na actuação de certos senhores no poder; caminhando por entre uma pequena multidão cansada que nos observa, desviamo-nos – nesse sonho – para um canto mais sossegado, eu e Mário Soares, em diálogo forte e áspero, de certo modo.
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A certa altura do diálogo, rimo-nos. Deixamos de nos picar e optamos por ser mais realistas, mais coerentes, mais pessoas preocupadas pelos outros do que outra coisa qualquer.
Falamos dos abandonados do Jamor e de Timor, e daqueles que pretendiam nova ditadura em Portugal, avermelhada; falamos da revolução e da estouvada descolonização de África; dos pobres e dos oportunistas sindicateiros do Alentejo e dos esfomeados do país; dos sem emprego e da prostituição à vista organizada em quaisquer ruas e vielas das cidades; dos drogados e cabeludos ensebados que se exibiam nas mesas dos cafés e nos restaurantes de vinho tinto à tigela; na pornografia lodosa/gratuita exibida, que graça por este país fora; das incertezas e da paz interior que não temos e da “paz” ultimamente notada da Intersindical; das estradas esburacadas e daquelas que se não arranjaram por conta do imposto de selo dos automóveis; do seu (dele) socialismo em Portugal e da sua social-democracia no estrangeiro. Finalmente falou-se da austeridade por ele aconselhada, principalmente à classe média do país.
É então que, como “amigo dedicado” do Dr. Mário Soares, lhe observo:
Austeridade, principalmente à classe média? Porquê? Se então você, ainda há poucos meses reivindicou quarenta e cinco contos por mês, que autoridade tem para aconselhar austeridade?
– Isso é uma observação fascista! – afirmou Mário Soares.
– Nem fascista, nem extremista, nem defensor de rapaces. – Retorqui. O que exijo é que você, Dr. Soares, seja defensor da justiça social e que não seja oportunista e, muito menos seja daqueles que procura engordar a sua pança – continuei – e, se não julgue insubstituível. Porque, Dr. Soares, o cemitério está cheio daqueles que se julgavam insubstituíveis. – Ironizei.
Acendo um cigarro, olho ao meu redor a multidão cansada de esperar e, verifico que Mário Soares está sentado no chão e encostado ao tronco de uma árvore apodrecida pelo tempo.
De rosto furioso, com duas grossas lágrimas sibilinas que lhe descem até à boca, pálido como os esfomeados de Timor e do Jamor, os olhos inchados e vermelhos como tomates maduros, mais parece um personagem dos filmes de Frankenstein, porque uma luz branca lhe é atirada pela multidão cansada de esperar!
Perante tal cenário e espectáculo que me assusta, pelos arrepios que sinto em todo o corpo, pelo ferrar dos maxilares que me contorcem, pelos rumores da multidão que me atormentam os tímpanos e pelos olhos que Mário Soares me oferece…, peço aos Anjos que me protejam; solicito-lhes rápida intervenção e levo sem me aperceber a mão ao bolso e enfrento aquele que mais parece já um cadáver-vivo, com um terço na concha da mão que minha mãe me ensinou a rezar.
O Dr. Soares treme perante o que vê; salta sobre si mesmo; fica esticado e duro como um pneu; sente que não tem forças para derrubar aqueles que usam terços para rezar; barafusta, espuma-se e expele o ódio e a ideologia do morto Marxismo. Soletrando e gaguejando, caindo no abismo utópico em que se deixou possuir, profetiza: “sereis todos cortados por “essas cordas” por onde insistis em usar”.
E caiu redondamente!
Novo burburinho se ouviu. Gritos de histeria acompanhados de dor, vozes roucas que denotavam fraqueza física, gente sem cor, sem alma, desesperados! E essa multidão cansada de esperar dizia: “inimigo do povo, político mentiroso que nos traíste, pincel da maçonaria”!
Com tanto frenesim à minha volta, sobressaltado, acordei.
Eram quatro horas da madrugada. Suava abundantemente, latejavam-me os tímpanos e doía-me a cabeça. Tomei um duradouro banho de chuveiro e notei que a noite já estava mais fresca. Recuperado, deitei-me novamente e sorri do sonho que acabara de ter.
E porque é urgente recordar e acordar o povo; e porque é proibido esquecer de como vai este país…, se escreveu o presente texto.
(Artur Soares – Agosto de 1978).
2 comentários
Parabéns e obrigado por mais um excelente e precioso documento que nos ajuda a compreender o presente
Abraço amigo
Grato, bom amigo, pelas suas palavras em referência ao meu texto. Serei feliz, se, os portugueses e os leitores do MINHO DIGITAL ficarem mais informados de como foi ABRIL EM PORTUGAL e de certos atropelos – Injustiças, violência e mortes – que fez contra PORTUGAL, contra os povos dos países ex-ultramar. (Artur Soares)