Editorial

Crónica da Europa (9): Trump e o Marquês de Sade

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Nos dez anos que Donald Trump já leva de vida política alucinante, o seu caso é mais de psicanálise e psicologia de massas do que apenas política no sentido corrente. Sei que parece estranho à primeira vista, mas é o marquês de Sade quem mais ajuda a perceber quem é este rufião.

Sadismo é sinónimo, para todos, da prática de atos de crueldade sexual e vem inseparavelmente unido a Alphonse Donatien de Sade, criatura que procedia das mais nobres famílias francesas que já desde o século XII amavam “la dolce vita” na cidade de Avinhão. A família produziu prelados, altos funcionários, militares e Laura de Sade, a mulher idealizada pelo poeta Petrarca. Nem todos eram devoradores de homens, animais e mulheres – nesta sequência – amantes do crime, da caça e da luxúria. Mas ao chegar à última geração antes da revolução, o marquês excedeu-se nas danças macabras dos velhos senhores da velha Europa

Donald Trump é uma cópia barata, macdonald, novo mundo, e com novas tecnologias, dos velhos senhores macabros da velha Europa. O pânico que neles provocava a ascensão do povo, levava-os a refugiarem-se em castelos solitários, entregando-se à volúpia e aos delitos – o guião dos livros de Sade; é o mesmo medo terrível que provoca em Trump a vinda dos imigrantes e a sua obsessão em erguer uma muralha nas fronteiras, para lhes obstar a entrada.

Trump, o nova iorquino do século XXI, milionário, empresário, presidente da mais poderosa república do mundo, parece estar nas antípodas de Sade, aristocrata europeu do século XVIII, escritor falhado e encarcerado em masmorras e manicómios.  Contudo, o ex-presidente e o marquês são caricaturas um do outro; ambos anunciam as pavorosas possibilidades do ser humano, cada qual no seu estilo.   O renascimento de Sade na França, Inglaterra e nos Estados Unidos dos anos 1950 e a edição dos seus escritos proibidos, correspondem ao fascínio que continua a exercer este grande conhecedor das torpezas de que o ser humano é capaz. Tal como Trump, o hipnotizador de massas neuróticas.

É certo que 74 milhões de americanos votaram em Trump em 2020 e é isso que o torna um caso de psicologia de massas. Assistir a um seu comício, segundo testemunhas saudáveis, é como participar em atos de tortura. A grande questão é que a audiência gosta de ser torturada. As neuroses e psicoses causada por questões mal resolvidas de ordem financeira e social e o pânico perante as questões raciais e sexuais são a explicação. Neuróticos e psicóticos encontram uma compensação na falsa imagem de um Trump  “triunfador”.

Mas será ele um triunfador, um “winner”? O “grande empresário” que conseguiu levar à falência os seus casinos? O “influencer” de O Aprendiz nas televisão que o levou para o lago dos tubarões da política? O vencedor de 2016 que fez a sua despedida violenta e grotesca do cargo presidencial no 6 de janeiro de 2021? O advogado George Conway, que se divorciou de Kellyanne Conway,  antiga conselheira de Trump, descreve como este é fácil de manipular mas impossível de controlar; acaba sempre por triunfar o seu culto narcisista.

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Narcisistas sociopatas. filhos de pais milionários, célebres em Nova Iorque e Paris, cada um com suas orgias e escândalos sexuais; um com treze anos de prisão, o outro a aguardar sentença. Em Trump, as referências a Hannibal Lecter, aos tubarões que perseguem gente, aos migrantes que comem animais de estimação, tudo dito no seu vocabulário esquelético, aprendido na indústria de construção de Nova Iorque, são feitos para incutir terror.

Sade foi transferido da Bastilha a 4 de Julho de 1789 para um asilo de lunáticos. Numa sua novela de 1795, Aline e Valcour, escolhera como herói o um aventureiro português Sarm(i)ento – um apologista do oportunismo cruel e da porno-utopia, que governa a terra exótica de Butua onde os crimes mais atrozes são cometidos à luz do dia, enquanto na ilha em Tamoé existe uma anarquia benevolente e orgiástica. Cem anos antes do Coração de Trevas de Joseph Conrad e duzentos anos antes do Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, o marquês estava a descrever os abismos de quem muda de civilização.

Trump está no século XXI e nas redes sociais e numa nação que vive um conflito social profundo. Com o seu nome político, faz negócios de milhões e biliões, em família, e com governos estrangeiros que a história, um dia, há-de apurar. É um blasfemo religioso que vende bíblias com a sua assinatura, e declara-se simultaneamente a favor e contra o aborto. Os momentos esquisitos em que fala de Hannibal Lecter, a sua obsessão com os tubarões, e agora de “imigrantes que comem gatos” são picos do iceberg de loucura dessa criatura-

No tempo de Sade, quando se considerava substituir as quimeras religiosas pelo terror extremo, escrevia o marquês; “Se o povo perdeu o medo do inferno, é preciso incutir-lhes o medo do inferno de aqui, o inferno da terra”. Trump faz o mesmo. Em cada um dos seus discursos, ameaça que haverá a terceira guerra mundial e que correrá sangue, se ele não for eleito.

Sade iniciou a sua Filosofia na Alcova com a fórmula brutal, Ainda um esforço, franceses! Já matastes o vosso rei, só falta matar o vosso deus. O rei na América chama-se Constituição, e um presidente norte-americano é um primeiro-ministro dessa Constituição que estabelece os direitos dos estados e, num aditamento, dos indivíduos. A terrível guerra civil foi travada em nome desses direitos dos estados que continuam decisivos no dia a dia. Viu-se o que foi a paródia canibal do 6 de janeiro.

No debate de 10 de setembro, uma mulher como Kamala Harris começou a deitar abaixo para sempre a dança macabra deste velho senhor da América.  Veremos o que se segue, mas é difícil deixar de sentir asco por personalidades como Donald Trump ou o marquês de Sade.

Encontrará Trump um diretor de prisão com a mesma humanidade do diretor do manicómio de Charenton onde Sade faleceu em 1803? De Coulmier, que fora padre da ordem dos Premonstratenses, tentou ajudar o marquês, colocando-o à frente da troupe de internados que representavam peças de teatro, como nos psicodramas de Moreno, reinventados no séc. XX?  Será esse o destino presidiário que fatalmente persegue Trump neste nosso século XXI?

 

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