A invasão da Ucrânia em 2022 por Putin criou uma situação de risco de uso de armas nucleares. E agora a 21 de novembro, a Rússia lançou com sucesso sobre a cidade de Dniepropetrovsk o primeiro IRBM, um míssil balístico com 36 ogivas com munições convencionais mas capaz de transportar armas nucleares.
O primeiro ponto a realçar sobre estas graves ameaças nucleares, é que a nossa análise da racionalidade dos meios e dos fins deve incluir os valores. Nós, no Ocidente, respeitamos vidas que respeitam outras vidas. O pseudo-religioso Putin coloca a coletividade Rússia acima de tudo, desde que coincida com os seus interesses.
Numa entrevista ao propagandista Solovyov, gravada a 10 de outubro de 2015, Putin usou a expressão sinistra que ficará para a história. “Em caso de guerra nuclear, nós, russos, vamos para o céu e os ocidentais morrem sem tempo para se arrependerem”. Mais adiante, deixa no ar uma pergunta ambígua “Caso houver uma catástrofe global … que adianta um mundo sem a Rússia?”
O caso é gravíssimo, e tem de ser avaliado em várias vertentes, desde a kinética à racional. Como filósofo, o meu compromisso é pensar a racionalidade e uma coisa é certa: não partilho a perspetiva do sr. Putin, que reduz a racionalidade a uma escolha de meios para atingir fins, como também é vulgar nos nossos manuais ocidentais sobre economia, segurança e política. Podemos ser muito racionais sobre os nossos meios de ação mas muito irracionais sobre as nossas finalidades; afinal era o que dizia o capitão Ahab que andava à caça de Moby Dick, a baleia branca.
Putin também tem a sua baleia branca – o império russo, o mundo russo, a civilização muscovita-kievana, etc. – e a sua racionalidade está impregnada destes valores que não são os nossos. Será que as suas preferências sobre a vida e a morte serão iguais às nossas? Certamente que pensa que os fins justificam os meios.
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Esta primeira ideia de Maquiavel é seguida, na atualidade, pelos terroristas suicidas; acham que vale tudo para atingir um mundo plenamente justo, mesmo com banho de sangue. Estará Putin preparado para sacrificar o presente da humanidade a um mágico mundo russo do futuro que teria lugar após um conflito nuclear?
O notável historiador Timothy Snyder apresentou-nos em 2023, um conjunto de argumentos tranquilizadores contra o risco de uso de armas nucleares pelo Kremlin, caso que considera muito improvável mas não impossível:
1) O uso de armas nucleares na Ucrânia não concretiza os objetivos estratégicos de Putin.
2) Putin não quer colocar em perigo os soldados russos na Ucrânia …
- …Nem matar a sua gente nos territórios anexados.
- Receia uma poderosa resposta dos EUA
- Não quer perder o apoio de aliados como a China
- Não arriscaria usar tecnologia nuclear que a Ucrânia poderia capturar
- Grandes Potências já foram derrotadas no Vietname e Afeganistão sem recorrer a armas nucleares
- O exército russo não está encostado à parede; basta-lhe recuar para a Rússia
- Se Putin perceber que a guerra está perdida, ajusta-se a essa realidade.
- Se quisesse usar armas nucleares, já o teria feito
- As ordens de Putin para o disparo de armas nucleares podem não ser seguidas
Esta é a lista de argumentos tranquilizadores que usa os valores democráticos correntes. Agora vamos avaliar os argumentos à luz de uma racionalidade mais ampla em que os fins são construídos pelos meios usados, tendo presente que Putin quer cumprir a promessa de uma Rússia grandiosa: 2) e que associa essa missão civilizacional à sua permanência no poder que já leva quase 25 anos de grandiosidade e paranóia. É o que se chama em escolástica, o SED CONTRA.
1) É verdade que usar armas nucleares não realiza o objectivo estratégico de Putin de anexar a Ucrânia mas quem diria que a grande invasão de fevereiro de 2022 iria mudar o curso da história?
2) e 3) Não parece verdade que Putin não queira por em perigo as vidas dos soldados e das
populações do Donetsk. As estimativas de baixas russas andam na ordem de 700.000 homens.
4) Não será que Putin quer mesmo desencadear uma resposta ocidental? Até as derrotas tácticas que tem sofrido lhe têm servido para mobilizar politicamente a população russa contra a NATO
5) É verdade que Putin não gostaria de perder o apoio dos aliados, sobretudo a China. Mas como escreveu Masha Gesser, pode subestimar o grau de reação da China e Índia e achar que nada farão.
6) Os especialistas militares terão aqui de se pronunciar
7) Quando a América e a URSS perderam as guerras do Vietnam e do Afeganistão não estavam
em jogo os respetivos interesses vitais. Não eram guerras existenciais.
8) É verdade que o exército russo pode simplesmente recuar para a Rússia. Mas não será vontade de Putin confrontar o Ocidente global?
9) Putin pode aceitar uma derrota temporária mas a sua escalada vai além da Ucrânia e constitui um desafio ao Ocidente e à ordem internacional. Os jovens no sistema escolar na Rússia estão a ser bombardeados desde há quase 3 anos com propaganda de guerra total.
10) Se Putin quisesse usar armas atómicas já o teria feito? Depende, pois a Rússia ainda não esgotou os seus recursos .
- Não há garantias de que sejam obedecidas as ordens de Putin para uma operação nuclear ( cf. caso em escala menor na Crise de Cuba) mas também não há a garantia do contrário.
Os argumentos de Tim Snyder têm como objetivo encorajar-nos a jamais nos submetermos à chantagem nuclear e concordo com ele. Mas os argumentos do historiador ativista têm um defeito; tornam a verdade dependente do que é justo, tal como o terrorista suicida, e pode cair no wishful thinking, no pensamento positivo. Ora o que é uma excelente peça de ativismo para a nobre causa da Ucrânia, não serve como explicação última. Donde as cautelas do Sed Contra.
Resta perguntar O que fazer? a velha pergunta russa de Tchernichevski no século XIX
Falar da racionalidade de um estadista que decide do uso de armas nucleares exige competências multidisciplinares: é preciso escutar militares, cientistas, juristas, filósofos, e pessoas com senso comum, a fim de que ninguém seja vítima da sua própria experiência.
É decisivo usar a consciência moral para não ficarmos presos na nossa visão do mundo e compreender que Putin tem outros valores. Sem perceber que os outros avaliam o mundo de um modo diferente do nosso, nada conseguimos. Não estou a dizer nada de novo. Aristóteles assim o disse no livro 1, capítulo 3 da Ética a Nicómaco, ao debater o método da ciência política.
Em segundo lugar, não podemos ceder à chantagem nuclear: devemos reconhecer que existe um risco nuclear e apoiar à mesma a Ucrânia. Esta guerra está a mudar o curso da história e é do interesse das democracias Ocidentais continuar a apoiar massivamente a Ucrânia. Perante ameaças nucleares explícitas, devemos recusar qualquer ultimato de Putin, até porque sabemos que opera em grande escala no tempo e no espaço e que ao ferir a Ucrânia, quer diminuir o Ocidente
Finalmente, temos de compreender o regime de Putin com clareza, sem “wishful thinking”; e essa clareza mostra como Putin fez crescer a sua tirania ao longo de 25 anos no poder.