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Crónica da Europa: A Europa dos estados e a Europa das sociedades

O Dia da Europa, é justamente comemorado a 9 de maio. Nessa data em 1950 o luxemburgês Robert Schumann convida a Alemanha e a França numa declaração para gerir em conjunto os interesses comuns do carvão e do aço. “A Europa não se construirá de uma só vez (…) resultará de realizações concretas, criando em primeiro lugar solidariedades de facto”.

E assim a Europa nasceu através da criação de solidariedades de facto

Assim se eliminou a oposição secular entre a França e a Alemanha com a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço em 1951, que unificou as produções de França, Alemanha e Benelux. A Itália juntou-se-lhes para formar o Mercado Comum Europeu em 1956.

Muitas outras solidariedades de facto nos trouxeram até ao presente. Aos abalos financeiros vindos dos EUA em 2009, a Europa respondeu emitindo títulos de dívida conjunta. Enfrentou conjuntamente a pandemia COVID-19 em 2020-21. Solidarizou-se com a Ucrânia, de modo talvez surpreendente, aquando da grande invasão de 2022.

Chegados ao presente, com o terremoto político ou grande crise “ocidental” iniciada pelo governo Trump, continuamos a ser chamados a participar na renovação desta primeira entidade estatal pós-moderna, que não tem  soberano, chefe ou rei, o que levanta muitos dilemas.

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Um deles é sobre a soberania. O funcionário imperial norte-americano chamado Henry Kissinger tinha muita dificuldade em aceitar esta novidade quando exclamava “Quando quero falar com a Europa, para que telefone hei-de ligar?”

O outro dilema é sobre o centro de poder: dizem-nos que temos de escolher entre a Europa federal de Bruxelas e a Europa das “nações”. Nacionalistas e anti-nacionalistas falam deste modo em termos ideológicos e partidários.

Um dilema ainda mais profundo e menos falado é entre estados-membros, e as sociedades que representam. A realidade é que nós, os Europeus, na nossa imensa diversidade, estamos desde há décadas a construir pontes entre duas realidades: a Europa oficial dos estados e a Europa das sociedades, “a deep Europa”.

É por isso que para a Europa, existem datas oficiais, de pompa e circunstância, e datas reais, de movimentos na sociedade.

Qual a data oficial em que Portugal entrou para a Europa? O Tratado de Adesão foi assinado a 12 de junho de 1985. Somos estado-membro desde 1 de janeiro de 1986. O pedido de adesão foi em 1977. Mas quando começou a ser ventilada a adesão?  Os meus amigos Charters d’Azevedo e Ascenso Luís Simões talvez saibam responder.

Qual a data real em que a sociedade portuguesa entrou para a União Europeia? Eu diria que foi no 25 de Abril de 1975. A maior realização dos sonhos políticos de uma sociedade é quando elege uma assembleia constituinte pelo mais amplo sufrágio e com o mais escrupuloso respeito pelos eleitores para decidir a constituição que o povo quer dar a si próprio.

Também podemos perguntar quem são os pais fundadores da Europa. Há uma lista canónica e politicamente correta que inclui Robert Schumann, o francês Jean Monnet, o alemão Konrad Adenauer, o italiano De Gasperi e outros. Mas existem outras nomes, entre ao quais sobressaem a dos subscritores do Manifesto de Ventotene.

O Manifesto foi escrito em 1941, por Altieri Spinelli e Alberto Rossi, prisioneiros de Mussolini, nos cárceres da ilha de Ventotene. Escreveram-no em papéis de cigarro que ficaram por fumar; enviaram-no por pombos-correio para o continente a duas mulheres – Ursula Hirschmann e Ada Rossi. Estas encarregaram-se de o reproduzir em ciclo-estilo e enviar para a Suíça e de aí para  o mundo.

O documento – Por uma Europa Livre e Unida. Projeto de Manifesto – contém uma mistura de afirmações marxistas e percepções saudáveis ??sobre uma Europa unida e pacífica. Quem o lê hoje não pode deixar de ficar impressionado pelo facto de o seu conteúdo profundo ser independente de  convicções ideológicas; nele se prenuncia o triunfo das tendências democráticas, que têm numerosas matizes que vão desde o liberalismo conservador até ao socialismo e anarquismo (…)

É preciso realçar que quando isto foi escrito, no Verão de 1941, Hitler estava vitorioso no continente. Só uma clarividência excepcional ou muita convicção consideraria  certa a derrota final dos nazis. O Manifesto foi concebido por homens que sofriam a violência fascista mas responderam com um apelo a um novo tipo de paz. E é esta antecipação da vitória das democracias que faz emergir a proposta política da segunda parte: a unidade europeia como tarefa do pós-guerra.

A primeira parte – A Crise da Civilização -mostra com muito realismo que os estados europeus em guerra se assememhlam  a um “feiticeiro que já não consegue dominar os poderes subterrâneos que evoca”. As provas históricas comprovam que nenhum país europeu pode permanecer isolado enquanto outros lutam, uma vez que as declarações de neutralidade e os pactos de não agressão são inúteis.

No texto, escrito em grande parte por Spinelli, que cortara com a tradição comunista, encontramos a mesma assertividade, do Manifesto de 1848, esculpida em frases secas, declarações peremptórias e juízos fulminantes. Era o tempo em que os comunistas europeus pensavam. Temos pena, Paulo Raimundo mas é impossível ser comunista quando foram liquidadas as circunstâncias sociais e económicas, ambientais e tecnológicas que o justificavam.

Spinelli e Rossi afirmam que após mais uma guerra global entre estados europeus, deverá chegar a revolução europeia. Mas tal como o conservador liberal Schumann, esse dois socialistas escrevem que a revolução europeia não iria cair do céu: desde o início será preciso “lançar as bases de um movimento capaz de mobilizar todas as forças para fazer nascer o novo corpo que será a criação mais grandiosa e mais inovadora que surgiu na Europa durante séculos, para constituir um Estado federal sólido”: o Movimento por uma Europa Livre e Unida, a ser construído “pela propaganda e pela acção” e pelo estabelecimento de “acordos e ligações entre os movimentos individuais que certamente se estão a formar nos vários países.

Em abril passado, a primeira ministra Giorgia Meloni veio atacar no Parlamento o Manifesto de Ventotene. Na verdade, Meloni extraiu frases soltas sobre o futuro marxista e federalista da Europa, sem as contextualizar. Estava a fazer  o habitual jogo dos nacionalistas contra  a Europa de Bruxelas, quando todos os dias ela e o seu ministro Antonio Tajani se encarregam de mostrar que são europeístas.

Uma Europa livre e unida por solidariedades de facto é uma condição cada vez mais indispensável para o desenvolvimento de cada um dos países europeus. Face a dirigentes políticos que, perante mais esta crise que atingiu a União Europeia, cambaleiam de cimeira em cimeira, encontrando saída parciais, mas sem visão de conjunto, ou sem visão alguma, temos de encontrar a aplicação concreta do grande princípio de Schumann e Spinelli: solidariedades de facto.

 

  1. Estava esta crónica escrita quando soubemos todos que o cardeal norte-americano Robert Prevost foi eleito bispo de Roma e Papa. Escolheu o belo nome de Leão XIV, evocando o iniciador da doutrina social da Igreja, para o qual a religião tem de promover a justiça social com impacto público.

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