Editorial

CRÓNICA DA EUROPA: Primeira semana de março. Que é pior: o erro ou o crime?

Sobre as ações do presidente Trump e do choque vertiginoso entre tronos e potestades que nos colocam os corações em sobressalto enquanto se acumulam os mortos e os estropiados das guerras, é útil citar o cínico Tayllerand sobre a ordem de Napoleão para assassinar o duque de Enghien: “Pior do que um crime, é um erro”.

Fotografia oficial de Donald J. Trump, presidente dos EUA

 

Quanto ao crime. Ser aliado não é questão de conveniência. É um compromisso moral. A América que liderou o mundo livre noutras épocas está a transformar-se num pântano de indecisão e cinismo. Mas a história julga, e julgará com dureza quem virou costas a povos em agonia. A vergonha não recai sobre os que continuam a lutar..

Quanto aos métodos. Chantagem, desonestidade, subornos, desrespeito, narcisismo, culpabilização da vítima, métodos sombrios vindos diretamente de 1938 e acima de tudo – delírios de grandeza. No Kremlin, na Casa Branca e Zhongnanhai. O mundo foi sempre assim e, como escreveu Hegel, as páginas negras da história são em muito maior número. Mas no final há sempre uma estatística sombria de mortes civis e militares, estupros, riquezas roubadas, cidades destruídas, fotografias que chegam diretas de 1915 e paisagens lunares nas fronteiras da Ucrânia enquanto o outro quer ir a  Marte.

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Quanto ao erro. Os EUA, liderados pelo seu 48º presidente e o seu best friend, querem dinheiro para diminuir a gigantesca dívida pública de 30 triliões de dólares e o mundo descobriu essa verdade simples; todos os que vestem fato completo e gravata na China e Rússia bem podem celebrar esta primeira semana de Março. Quanto à Europa está mais sozinha e terá de agir como se estivesses em guerra.

O que o presidente Trump tem feito é imoral, como assinalou Teresa Toldy em artigo marcante. Todos perceberam a mensagem que esta América passou ao mundo ao maltratar um aliado, um símbolo da resistência contra o império, quando o humilhou com gestos, palavras e atitudes indignas de um presidente. Todos vimos em imagens que a história nunca esquecerá um espetáculo vergonhoso, uma demonstração de oportunismo que fortalece os inimigos da liberdade e as potências do mal.

O mundo percebeu que o ato de humilhação do presidente Zelensky a 28 de fevereiro foi um gatilho artificial para as ações desde então desencadeadas; suspensão das entregas de armas à Ucrânia, mesmo das que estavam a 100 metros da fronteira. O comando cibernético dos EUA teve ordens para parar todas as atividades contra a Rússia. Fim da partilha dos dados de inteligência militar: a Ucrânia agora não poderá lançar certo tipo de mísseis nem saber com antecedência quando chegam os mísseis de Putin.

É tudo imoral mas é também um erro colossal da América. John Bolton, antigo conselheiro nacional de segurança de Trump é dos que consideram que Putin e Xi Jinping se riem, do camarote, do desrespeito infligido a Zelensky; percebem que os EUA hesitam, que Trump se curva ao populismo autoritário, que não preza a democracia e parece querer partilhar o mundo em esferas de influência. “Eu fico com a Gronelândia, Panamá e Canadá; tu tens a Ucrânia e os Bálticos e a Europa do leste; ele fica com a Formosa e o Mar da China Meridional.” Nos círculos de oligarcas de Mar-a-Lago, chama-se a isso “realismo diplomático”.

No plano interno, nunca antes um presidente americano desprezou a Constituição tão descaradamente: decretos de legalidade duvidosa, demissão de juízes, expurgo dos chefes militares, subversão das restrições ao poder, apropriação de dados pessoais pelo DOGE, usurpação do controlo das redes sociais. Não é apenas uma “ilusão autoritária” – é uma tentativa de usurpar a democracia. A destruição da República de Weimar em 1933 levou apenas um mês.

As sondagens aos Europeus mostram uma repulsa que atinge até 70% das populações pelas atitude de Trump. Até Marine Le Pen veio solidarizar-se com a Ucrânia. E o que pensar de Trump e dos seus seguidores? Que aplaudem esta postura, que reduzem a luta da Ucrânia a uma moeda de troca para os seus jogos de poder, que fingem ignorar a destruição, os massacres e o sofrimento?

Os poderes da Europa têm de falar de outra maneira, dando uma folga aos oligarcas de Washington. Como disse o presidente Macron, no discurso à nação de quarta-feira à noite: “Quero acreditar que os Estados Unidos permanecerão ao nosso lado. Mas devemos estar preparados se não for esse o caso.” Tal como De Gaulle, em circunstâncias ainda mais difíceis, o presidente francês soube ser moral e ser político.

Foi essa a atitude da cimeira de Bruxelas deste 6 de março. Os governantes europeus, no que diz respeito às relações com Washington, têm de aliar o optimismo da vontade ao pessimismo do intelecto. A Europa tem de estar preparada para uma rotura com os EUA, pois com a personalidade transtornada de Trump tudo é possível.

As nações europeias em Bruxelas decidiram alterar as suas economias e abandonar regras de dívida fiscal que pareciam imutáveis, mesmo que isso corra o risco de um confronto com os mercados obrigacionistas e  parte dos eleitorados.

“Custe o que custar”, foi a palavra de ordem de Mario Draghi, do Banco Central Europeu que permitiu à a Europa ultrapassar a grande crise da zona euro após 2009. “Custe o que custar” foi assim que a Europa ultrapassou a crise da COVID-19. “Custe o que custar” é o lema com que a Europa quer ultrapassar esta crise total de segurança, sabendo-se que a grande invasão de Putin se poderá estender aos países bálticos

Tal como muitos, quero acreditar em duas coisas; na resistência da democracia americana e na resiliência dos Ucranianos. Os protestos em casa na América já começaram. Mas em apenas um mês, Trump já causou mais danos à América do que nos quatro anos da presidência anterior. A Ucrânia estava a travar uma guerra contra um ditador; agora está em guerra com um ditador ajudado por um traidor.

Quanto à resiliência dos Ucranianos, quando acabar a guerra – e vai acabar um dia – Volodymir Zelensky, Deus o queira, poderá fazer um grande filme, um documentário em que poderá contar tudo em primeira mão. Um filme sobre esperança e dor, sobre traições intermináveis, sobre decisões difíceis. A verdade nua e implacável, incluindo sobre ele próprio, o ator principal da comédia Servos do Povo, a ficção que se tornou realidade e o tornou presidente em 2019. Em  nome de todas as vítimas e dos oprimidos, de todos os mortos, ucranianos e russos. Em nome daqueles que não voltam das guerras.

2 comentários

  1. Análise de grande lucidez e infelizmente de grande realismo
    A geração que nasceu no pós guerra, que assistiu à reconstrução da Europa,
    tem dificuldade em acreditar que Trump é presidente da maior democracia.
    O que diria Marshall ? Perplexos com o mal que se transformou em bem
    Obrigada Mendo pela preocupação constante de nos manter informados

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