Preferência humana pela ilusão

Vivemos num mundo onde a verdade, por mais evidente que seja, parece estar em desvantagem diante da ilusão reconfortante.

A humanidade, ao longo da sua história, sempre teve uma relação ambígua com a verdade. Enquanto filósofos, cientistas e pensadores a procuram incessantemente, o cidadão comum, preso na incerteza da sua existência, frequentemente prefere virar o rosto e abrigar-se no conforto de mentiras convenientes ou promessas impossíveis. A questão que se levanta é: por que a verdade, que deveria ser um ideal tão nobre, é frequentemente rejeitada pela maioria, em troca de ficções sedutoras?
Desde Platão, que nos deu a alegoria da caverna, até Nietzsche, que questionou a própria necessidade da verdade, a filosofia tem sido uma busca contínua por compreender a relação do ser humano com a realidade. Platão descreveu-nos como prisioneiros que, desde o nascimento, observam sombras projetadas na parede de uma caverna, confundindo essas sombras com a realidade. Quando alguém tenta libertar-se dessas correntes e alcançar o mundo exterior, onde a verdade reside, a luz da verdade é tão forte que, inicialmente, cega.
Para Platão, o caminho da verdade é doloroso e exige coragem; não é de espantar, então, que tantos escolham permanecer no conforto das sombras.
A maioria das pessoas não está preparada para enfrentar a verdade porque a verdade é, frequentemente, dura e incómoda. A verdade expõe as fragilidades, limitações e incertezas da vida. Confronta-nos com a finitude da nossa existência, com a fragilidade das nossas crenças e com a incerteza do futuro. Aceitar a verdade implica, muitas vezes, reconhecer que estamos errados, que fomos enganados ou que a segurança que acreditávamos ter era ilusória. Diante dessa revelação, muitos preferem agarrar-se a promessas impossíveis — porque estas alimentam o desejo humano de controle, esperança e segurança. Por que razão, então, as promessas impossíveis têm tanto apelo? A resposta reside, talvez, na profunda necessidade humana de acreditar. O filósofo Blaise Pascal afirmou que o ser humano é uma “máquina de acreditar”.

Vivemos da esperança de que o amanhã será melhor, que existe uma ordem no caos e que há algo ou alguém no controle. Mesmo que essas crenças sejam ilusórias, elas fornecem um suporte psicológico que nos permite continuar a viver. Governos, líderes e até empresas entendem esse mecanismo intrínseco. Oferecem ao público narrativas grandiosas, planos utópicos e promessas impossíveis porque sabem que, para a maioria, a ilusão de uma solução mágica é preferível à verdade nua e crua da complexidade dos problemas. A promessa de um milagre económico, a solução definitiva para a criminalidade, ou uma cura milagrosa para as mazelas da sociedade é muito mais reconfortante do que encarar o trabalho árduo e o sacrifício necessário para alcançar mudanças reais. A mentira, convenientemente embalada, satisfaz a fome de esperança e o medo do desconhecido. Mas essa preferência pela ilusão tem um preço. Enquanto nos afundamos nas promessas vãs, adiamos as ações necessárias e evitamos enfrentar os problemas estruturais da nossa sociedade. Tornamo-nos cúmplices das mentiras que nos são vendidas, porque, de certa forma, queremos acreditar nelas. E, assim, a verdade torna-se subversiva, uma ameaça à nossa paz mental.
Nietzsche, talvez mais radical que Platão, argumentou que a verdade não só pode ser dolorosa, como pode ser destrutiva. Para ele, a verdade crua, despojada de adornos, poderia esmagar o espírito humano. Em vez de buscar a verdade por si só, Nietzsche sugeria que devíamos criar as nossas próprias verdades, ou pelo menos, viver de acordo com ficções nobres que nos fortalecessem, em vez de nos enfraquecerem.

Será, então, a mentira uma necessidade para a sobrevivência psicológica? Talvez.
No entanto, essa perspetiva coloca-nos num dilema moral. Se a verdade pode ser destrutiva, é justo continuar a viver na mentira? Ou será que o verdadeiro crescimento humano, tanto individual quanto coletivo, só pode acontecer através da aceitação, por mais dolorosa que seja, da verdade? A verdade tem o potencial de libertar, mas antes de nos libertar, ela quase sempre nos fere. O processo de desconstrução das ilusões é doloroso, mas é também o único caminho para uma vida autêntica.
A preferência pela ilusão não é apenas um fenómeno individual, mas também coletivo. As sociedades, no seu todo, criam mitos e narrativas que sustentam o seu funcionamento. Muitos dos ideais em que acreditamos — como o progresso constante, a justiça infalível ou a meritocracia perfeita — são, na verdade, abstrações idealizadas que raramente correspondem à realidade. Estas ficções coletivas ajudam a manter a ordem social, mas também podem cegar-nos para as falhas e injustiças do nosso mundo. A política moderna exemplifica isso.
Eleições, debates e promessas eleitorais muitas vezes não são baseados em verdades difíceis, mas em promessas de soluções rápidas e eficazes, que raramente são realistas. A população, em muitos casos, não apenas aceita, mas anseia por essas mentiras. O candidato que fala a verdade, que expõe os sacrifícios necessários ou a complexidade dos desafios, é geralmente visto com desconfiança ou apatia. A verdade é que preferimos o conforto da promessa impossível à responsabilidade que a verdade exige de nós.

O ser humano, por natureza, busca a verdade, mas também a teme. A nossa recusa em aceitar a verdade, em muitos casos, não é um sinal de fraqueza, mas sim uma expressão do profundo medo existencial que nos acompanha. Preferimos as promessas impossíveis, as ilusões que nos tranquilizam, porque enfrentar a verdade significa confrontar a nossa própria fragilidade, a nossa limitação e a incerteza da nossa existência. No entanto, a verdade, embora dolorosa, continua a ser o único caminho para a autêntica libertação. Só quando tivermos a coragem de deixar as sombras da caverna e encarar a luz — mesmo que inicialmente cegante — poderemos começar a construir uma realidade mais justa, mais honesta e mais significativa. Até lá, continuaremos a viver, confortáveis, mas aprisionados, no abraço caloroso das mentiras que escolhemos acreditar.

  Partilhar este artigo

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *