Zita Leal
Professora
(Aposentada)
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Esta é a primeira e será a última carta de amor que te escrevo.
Nunca estivemos longe, nunca tivemos saudades um do outro.
As horas eram curtas para a cozinha, para as roupas, para o aspirador e eu gostava de te ver sempre arrumado e de estômago satisfeito. Acho que consegui. Pelo menos sei que aprecias as minhas sopas e o arroz doce. As pessoas também dizem que andas sempre limpinho e “ jeitosinho “. Sorriem ternurentas quando nos veem de mãos dadas nos passeios da terra, mas isso é porque já me desequilibro de vez em quando e os buracos no caminho são traiçoeiros. Se calhar acham-nos dois velhotes desavergonhados. Mas eu quero é agradecer-te por mais coisas: encontrares as chaves, o telemóvel, os chinelos quando voltamos para casa, a caixa dos comprimidos, aquelas coisas, sabes, que parece que o diabo esconde e me fazem andar às voltas na sala e na cozinha.
Quando acordas, olhas para mim e dizes: “ ó cara linda, pareces um anjinho “ quando eu sei muito bem que não sou boa de assoar se me chega a mostarda ao nariz e a minha cara parece o mapa das estradas com ruelas cruzadas … Será amor?
Quando me massajas os dedos dos pés sempre gelados da circulação fora de validade e as tuas artroses das mãos refilam…Será amor?
Quando sobes as escadas com os sacos das compras só para eu me poder agarrar ao corrimão e sofrer menos…Será amor?
Quando a televisão mostra as actrizes da minha idade bem recauchutadas pelas plásticas e pelas boutiques famosas e te viras para mim e dizes com o ar mais convincente do mundo: “ olha , parece tua mãe “… Será amor?
Pela ternura com que me afagas as peles caídas, as gorduras mais que localizadas, as brancas teimosas em resistir à tinta, pelas caturrices de velha com pouca pachorra para te ver agarrado ao écran quando o Porto joga e eu queria ver a telenovela na televisão da sala que é grande, pela paciência que tens quando estava combinado ir ao cinema e eu digo num rompante “ agora, já não quero “, eu quero dizer-te, que estou grata à vida por me ter dado o companheiro dedicado, amigo, amoroso que ameniza as horas cinzentas, por vezes, da velhice.
Obrigada, meu amor, gosto de ti.