Zita Leal
Professora
(Aposentada)
GOSTA DESTE CONTEÚDO?
- Não se esqueça de subscrever a nossa newsletter!
Fui o que se pode chamar de zero à esquerda no que respeita a números. As tabuadas da quarta classe foram à conta da régua e da cana da Índia, as operações básicas também, mas para o resto, como não havia reguadas no Liceu…
Equações, raízes de qualquer grau, problemas piores do que os das torneiras ficaram pelo caminho, melhor dizendo, nem pelo caminho. Mandei-as mesmo para a berma da estrada. Em adulta fizeram-me falta, mas o marido que era contabilista colmatava amavelmente a minha ignorância.
As pessoas, a questão social, os afectos, os sem lar, sem pão, sem amor, isso é que me interessava. Os números, pouco. E mesmo tentando o euromilhões esqueço quase sempre de verificar se fiz algum número certo. Mas sou feliz assim.
– Morreu o vizinho do quarto andar? Coitadinho. E de quê? Quando é o funeral? Tenho que ir comprar um raminho…
Ouvia-se isto a miúde na nossa rua e na outra, e na outra, na padaria, no talho. Abraços, lágrimas, carícias na cabeça dos familiares, um pousar leve de mão na tampa do caixão não traziam o falecido de volta, mas dava um calorzinho bom ao frio da lágrima.
Hoje procuro no écran da televisão o número de mortos no meu país, a percentagem dos mortos na minha cidade, mas nem sei os nomes, nem me lembro que há famílias a sofrer nem sei por quem, parece que só os números me interessam. Mas não sou eu que passo ao lado dos números e que só me interesso pelas pessoas? Algo mudou em mim e não gosto. Como não gosto de saber que a maior parte daqueles que o vírus apanha, não vão sentir um último afago, um último adeus da família.
Detesto os números.
Detesto as percentagens e cada dia me angustio mais perseguida por elas.