Editorial

Crónicas de Trazer por Casa: A Gaivota que Voltou (Uma pequena homenagem a Luís Sepúlveda)
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Zita Leal

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Zita Leal

Professora

(Aposentada)

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Ao começo não percebi, não gostei, enraiveci.

Como é que alguém que eu até pensava que era a minha mãe me empurra para um espaço que não conhecia, para um espaço que só era mesmo espaço sem tempo sem referência a que me agarrasse?  Ensinou-me a voar? À bruta, quero dizer. “ Abre as asas e voa!”. Assustei-me a sério. Depois lá fui esbracejando, ou melhor asando, asa aqui, asa acolá até um areal próximo. Grande, grande! Havia alguns pássaros como eu e agora já sei que somos gaivotas. É quentinha esta areia: é azul de céu aquela água. Chama-se Mar. Gosto!

Vem ali uma gaivota branca que me pergunta. ” De onde vens? Nunca te vi por aqui por isso é que estou a perguntar-te”  Eu só sei que vivia numa varanda com a minha mãe-gato. E respondo-lhe um pouco a medo: “ Venho da varanda. Nasci lá, vivi lá e aprendi a voar lá com a minha mãe-gato “. Esta gaivota parece que não acredita no que lhe digo. “ As gaivotas não nascem em varandas dos homens: nascem nos rochedos, nas ilhotas que o mar tem. Nunca conheci nenhuma gaivota tão estranha como tu. O que é que comias? “ “ A minha mãe-gato dava-me migalhas de pão, bocadinhos de peixe que um gato amigo lhe levava e mais coisitas de que não sei o nome. E aqui quem me dá de comer?”

“ Olha, fazes-me lembrar um avô meu que achava que viver para procurar peixe com o bando, não era viver, que a força do nosso pensamento resolvia tudo até a necessidade do alimento, que bastava querer para alcançar rochas e mares que nunca tínhamos conhecido. Era estranho como tu. Até o nome era diferente dos nossos “. “ Como era, lembras-te? “ Fernão Capelo Gaivota.” “ Ainda será vivo? Gostava de ir procurá-lo “

Esta semana o meu amigo deu-me uma grande alegria: “ Anda aí uma gaivota que faz parte do bando do Fernão e que costuma guiar as gaivotas estranhas como tu até ao sítio em que vivem. Queres ir com ela?” “ Claro, claro que quero”!

E foi assim que encontrei o rochedo em que o Fernão vive com o seu bando. Todos me receberam muito bem a “ asarem “ alegremente por cima de mim, a ensinarem-me truques fantásticos nas técnicas de voo e o próprio Fernão me dá lições de voo SÓ com o pensamento. É o que eu mais gosto. Estou muito feliz aqui. Às vezes sinto um apertozinho no coração.

Lembro-me da minha mãe-gato, da minha varanda e tenho saudades. Logo que consiga voar com o pensamento vou lá. Tenho que aprender mais depressa.

– Noto que já aprendeste a voar sem asas, mas parece-me ver alguma sombra nos teus olhos. Que se passa?

-Tenho saudades da minha mãe.

-Vai conversar com ela e convida-a para vir viver connosco. Pode ser que ela queira

– Não pode, não tem asas. Os gatos têm quatro patas.

– A tua mãe é um gato???

– Foi ele que me criou desde a primeira hora porque a minha mãe gaivota morreu quando eu nasci, por causa de um óleo negro que andava no mar. Ela conseguiu arrastar-se até à varanda onde o gato vivia e ele tomou conta de mim. Foi minha mãe, meu amigo e até foi ele que me ensinou a voar. Tenho muitas saudades dele, da minha mãe-gato.

– Está na hora de ires. Vai e trá-lo contigo.

– Fernão, ele não tem asas, é um gato, não voa…

– E as lições que te dei não servem para nada? Não precisas de asas para voar. O teu pensamento transporta-te. Sê forte, vai.

Vim mas a minha mãe gato não está na varanda. Tem a porta aberta que dá para a sala e está toda enroscadinha no tapete.

 – Mãe, está a dormir?

 – Que alegria ver-te, gaivotinha! Pensei que nunca mais iria ver-te. Estou muito doente…

 – Mãe, venho buscá-la para ir viver comigo para um lugar lindo, sereno, sem dores, sem sofrimento. Venha!

 – Filho, não posso levantar-me, não tenho forças.

 – Lembra-se de me ter ensinado a voar sem saber como fazer porque não tinha asas? E eu voei. Pois hoje vai voar comigo para um espaço infinito e não precisará de asas. A força do nosso amor junta-se à força do nosso pensamento e num instante estaremos para lá do horizonte, juntos e felizes.

 E agora estamos deste lado da Mãe Natureza, eu gaivota e a minha mãe-gato que me ensinou a voar.

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