Editorial

DE UM OSSO E DE UM SOPRO SE FEZ SER
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Zita Leal

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Zita Leal

Professora

(Aposentada)

 

De um osso e de um sopro se fez Ser

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

Tomou forma de ânfora e de viola

Amou o companheiro e gerou vida

No seu ventre quente de MULHER

Vergou-se sob o peso do trabalho

Na fábrica, no lar, na oficina

Em casa foi amante, amiga, mãe,

Mulher adulta em sonhos de Menina

 

Outras vezes, não chegou a ser Criança,

Não soube de bonecas ou de escola,

Vendeu pensos na rua, roubou fruta,

Dormiu em vãos de escada, por esmola.

Às vezes, um senhor lá a levava

Dava-lhe banho, roupa, de jantar

E ela mexia em pele balofa e pêlos,

Carne esquisita, difícil de beijar

 

Mais tarde, foi p’rá estrada,

Entrou na vida, ou foi na morte?

Um dia o saberá…

Fogueira aos pés para espantar o gelo,

A perna ao léu aquece e agradece

A carne já anima, tenta o freguês, sorri;

O coração não ri, nada o aquece

 

Há outras que têm melhor sorte:

Têm grinaldas, festa, a bênção do Senhor.

Zelam o lar, os filhos, o trabalho,

Abrem-se à noite, ao homem, por amor

Não sabem da irmã, da tal da estrada,

Ou da outra dos bares, da perdida,

Não sabem que ali mesmo, mesmo ao lado

Há vidas de mulher sem serem Vida.

 

E aquelas que, de noite, pela calada

Viam o seu sossego violado?

E a casa remexida, o filho aos gritos,

O seu homem levado, amordaçado?

Tanta heroína de luta já esquecida,

Estórias que Portugal teima em esquecer,

Companheiras da luta clandestina,

Também Abril nasceu de ti, Mulher!

 

Já hoje, em nossos dias, bem lá longe,

Aconteceu de novo a Criação

Os Deuses, não sabemos a razão, enlouqueceram

E despejaram em terra, rios de raiva e de rancor

A água cobriu tudo, matou a Vida.

Mas, no cimo de uma árvore

Ficou uma ânfora esquecida

Bem bojuda, por sinal

Nem parecia uma ânfora, de tão larga

Não foi preciso um osso

Não foi preciso um sopro divino

No cimo de uma árvore verde

Tingida de sangue

De um grito branco de mulher negra

Nasceu um novo Deus

Nasceu a Vida

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