Editorial

DOIS ANOS
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Joana Cardoso

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Arquitecta

 

Acordo com o sol a espreitar por entre as frinchas da persiana. Ouço a ambulância ao longe e digo-lhe bom dia de volta:

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

– Tinoninoninoni!

Reparo no porco de borracha que ficou esquecido no chão e levanto-me de um salto. Pego no porco e no urso de peluche e corro para a cama dos meus pais, que dormem a sono solto. Enfio-me debaixo dos cobertores e a Mamã abraça-me, ainda de olhos fechados. Atiro-lhe o porco à cabeça, para a acordar, mas não funciona.

Tática número dois: acordar o Papá. Puxo-lhe os cobertores e lanço-me sobre dele com um grito de entusiasmo. Nada. Pego no telefone, que faz sonzinhos deliciosos quando eu toco no écran, e isso acorda a Mamã. Vitória!

– Não mexas aí. – diz, abraçando-me e tirando-me o aparelho.

 

Vamos até à sala. O dia começa bem com o nosso jogo matinal – eu corro e a Mamã tenta apanhar-me. Salto para o sofá, esgueiro-me por debaixo da mesa, escondo-me atrás de uma cadeira. Finalmente a Mamã ganha e troca-me o pijama pela roupa de dia. Fico contente por ir usar a camisola com o porquinho, a minha favorita, e faço “ronc ronc” em jeito de aprovação. A mamã, que é facilmente impressionável, ri-se e bate palminhas.

As coisas pioram quando reparo que hoje não há meias vermelhas – é que eu estava mesmo a contar com umas meias coloridas para abrilhantar o dia. É muito agradável ver os meus pés com uma cor bonita à minha frente mas, para minha tristeza, hoje as meias são cinzentas por isso tiro-as mal a Mamã as põe. Prefiro ver os meus pés, obrigada.

 

Divirto-me muito durante a manhã. Faço puzzles de madeira, jogo à bola, esmago plasticina e uso marcadores para desenhar.  A Mamã brinca comigo e no fim põe os marcadores e a plasticina de novo na caixa. A Mamã gosta muito de arrumar os brinquedos e até me convida a arrumar com ela, mas eu não lhe quero tirar o prazer. Prefiro dedicar a minha atenção ao carro azul com rodas gigantes, uma beleza que faz uns sons incríveis quando carrego nos botões.

Não tarda a Mamã decide que são horas de almoçar, precisamente quando eu estava tão concentrado nas rodas do meu carro azul. Claro que não é apropriado interromper-me por causa da sopa, que não foge. Ignoro as múltiplas menções que a Mamã faz ao almoço, mas quando ela fala em lavar as mãos decido, pelo sim pelo não, esconder-me atrás do sofá.

 

A Mamã descobre-me e arrasta-me até ao lavatório. Na verdade até estou com fome, mas mesmo assim recuso-me a mexer-me, porque assim sou levado ao colo. Não há nada que eu mais goste do que ser transportado e se eu esbracejar torna-se ainda mais divertido. Mas a brincadeira não dura muito e num instante dou por mim sentado na cadeira alta, com a mamã a tentar pôr-me uma babette. Não sei porque insiste, visto que é algo que não suporto. Detesto o cheiro das babettes e rapidamente a tiro, com guinchos de protesto. A mamã acaba por ceder e veste-me uma t-shirt velha para eu não sujar a camisola.

O almoço é óptimo e o Papá também está presente, o que normalmente eu adoro, excepto quando a Mamã e o Papá começam a falar entre si e a ignorar-me. Isso resolve-se rapidamente com uma cuspidela de comida para o chão – é um desperdício, mas é técnica infalível para interromper o tête-à-tête. Cuspidela – raspanete – acaba-se a conversa paralela. É limpinho.

 

De tarde, mais uma vez, falhamos o parque. A Mamã já não vai comigo ao parque há três semanas. Choro e aponto para a porta, num esforço desesperado. Todo o meu ser se reduz ao desejo de apanhar ar fresco, andar de escorregão, saltar e correr livremente. Mas a mamã é inabalável. Para me consolar, abraça-me e deixa-me ver os meus desenhos animados favoritos. O meu desgosto desaparece aos poucos e é substituído por conforto e amor.  Sossegado, encosto-me à Mamã e adormeço.

Quando acordo estou sozinho na sala, deitado no sofá. Não vejo vivalma e um pânico surdo invade-me o corpo. Levanto-me, estremunhado, e um choro incontrolável irrompe do fundo do meu ser. Entra a Vovó e os meus gritos aumentam. Será que a Mamã se foi embora? Vou vê-a outra vez? Finalmente chega a Mamã e eu abraço-a, o alívio ainda misturado com o medo que ela tivesse fugido. A Mamã abraça-me e dá-me beijinhos, mas eu não me consigo acalmar. Diz que vai buscar um iogurte e tenta pôr-me no chão, mas eu não caio nessa. Quero ir buscar o iogurte ao colo da Mamã, não vá ela desaparecer.

 

O resto da tarde é passado com os meus amigos todos, que são de peluche e mais pequenos que eu. Fazemos uma festa na tenda colorida a que a Mamã chama Castelo; a certa altura o Papá junta-se a nós e o dia torna-se ainda mais fantástico. Quando o Papá chega a Mamã vai-se sentar ao computador, mas eu sei como lidar com isso e trepo para as costas da cadeira, tentando alcançar o teclado. Ao fim de quatro ou cinco tentativas bem sucedidas a Mamã desiste e junta-se à festa. Iupi!

Ainda temos tempo para uma luta livre antes do jantar, que é a minha brincadeira preferida. Rebolamos os três pelo tapete mas a certa altura o Papá zanga-se comigo porque eu bati na cara da Mamã sem querer. É difícil regular a minha força, se calhar sou um super-herói e os meus pais não fazem ideia.

 

Finalmente chega a hora do jantar, seguida de um banho quente. Alinho os patos coloridos na beira da banheira e espirro água para cima deles. Ainda com o sabor de pasta dos dentes na língua, meto-me na cama fresca de lençóis bem-cheirosos. O Papá conta-me a história do Coelhinho três vezes e depois desliga a luz. No escuro, fico acordado uma eternidade. O Papá não sai do meu lado, ouço a sua respiração quente e reconfortante, mas mesmo assim não consigo parar de me mexer, é mais forte do que eu. Braços, pernas, rabiote, todo o meu corpo é acometido por uma energia que não controlo. O Papá fica ali comigo, fazendo-me festas no cabelo, o seu toque calmo transmitindo-me calma também. Resisto. Levanto-me e volto-me a deitar. Aponto para a porta e tento  sair do quarto. Peço para beber água. O Papá, com toda a sua serenidade, acaba por me transmitir tranquilidade também. Aos pouquinhos, sem dar conta, deslizo suavemente para o reino dos sonhos.

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