Editorial

Elias
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Joana Cardoso

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Elias vivia uma vida imaculada numa célula imaculadamente clara. Morava no sexto andar, apartamento B, de um bloco que ele próprio desenhara. Sentindo o jacto regular do chuveiro sobre as costas, olhar perdido nas torneiras Hans & Grohe modelo 33, perguntou-se quantos arquitectos se poderão gabar de viver num bloco de apartamentos de sua autoria. 

Muitas cabeças colaboraram para criar aquele prédio pouco original, bloco cor de biscoito salpicado de diminutas varandas de metal. Mas ele tomava para si a responsabilidade de todos os erros que, diariamente, aborreciam os habitantes do prédio. De cada vez que ligava o interruptor da sala – aquele que fora posto no sítio errado – uma ruguinha quase imperceptível surgia entre as sobrancelhas finas.

De manhã ia de comboio para o escritório – um comboio sujo e cheio de histórias para contar, contrastando com as divisões mínimas, novas-em-folha, ainda a cheirar a tinta fresca, do andar em que ele morava. Chegado ao escritório trabalhava no novo projecto – mais um bloco de apartamentos, quase idênticos aos que tinham acabado de sair do forno.

Ninguém sabia tanto da poda como ele. Nem o cliente, nem o director, nem sequer o arquitecto que dava nome à firma. Ele desenhara andares iguais àqueles. Mais! – ele vivia em andares iguais àqueles. Ele sabia de todos os erros, de todos os problemas, de todas as dificuldades. Ele seguira o projecto desde o primeiro esboço até à última camada de tinta, e para além dela. Ele respirava, acordava, dormia num irmão mais velho daquele em que trabalhava. Sentia uma autoridade que não podia ser igualada, uma sede de perfeição que só seria conseguida se o ouvissem. Infelizmente, isso raramente acontecia, e todo o potencial do novo edifício se esvaía entre os dedos.

A ideia de alugar um daqueles andares viera muito antes da obra estar completa. Já quando fazia os primeiros esboços, tentando amontoar o maior número possível de apartamentos no espaço limitado que tinha, se punha a pensar em qual escolheria. Havia um, em particular, do qual gostava muito – era o 6 D – mas como esse ficou logo ocupado ele teve que se contentar com o 6B, o seu segundo favorito.

Morar ali era o seu luxo. Custava-lhe metade do seu salário e levava-lhe uma hora a chegar ao escritório, mas o prazer que lhe dava ultrapassava tudo isso Era uma aprendizagem insubstituível, reflectia ele, justificando a sua extravagância. De qualquer modo, era a sua única indulgência numa vida quase asceta. Nunca se interessara muito por roupa – enquanto os seus colegas usavam marcas de designers de vanguarda, ele contentava-se com as calças, t-shirts e camisolas de Uniqlo, sempre as mesmas, num sortido de cores escuras que ele mandava vir online. O maior prazer que as roupas lhe davam era mostrarem-se, perfeitamente ordenadas, nos armários que ele desenhara. Camisolas naquela prateleira, calças dependuradas das cruzetas, cachecóis na gaveta de cima. Da próxima vez, ponho três gavetas em vez de duas. E da próxima, decididamente, usaria um carpinteiro melhor, alguém que tivesse mais cuidado nos acabamentos. Como era possível que alguém com dois olhos na cara não visse o desalinho dos puxadores?

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Não tinha amigos, pelo que raramente ia jantar fora ou beber uns copos. Sabia cozinhar na perfeição, pratos simples mas cheios de sabor. De vez em quando – normalmente à sexta – visitava o supermercado mais luxuoso e comprava os ingredientes de maior qualidade. Óleo de trufas, tomates secos italianos, arroz bravo, pinhões. Com todo o tempo do mundo, fazia um jantar delicado, e cinco minutos antes de estar pronto escolhia a garrafa de vinho, da selecção que ele guardava na garrafeira para ocasiões destas. Era maravilhoso poder mexer-se na cozinha dos seus desenhos, usar o fogão onde ele o colocara, cortar os legumes na superfície cinza-clara que ele escolhera entre as amostras que o estagiário lhe mostrara. E no fim, quanto prazer ao rematar o jantar com um café, tomado no sofá de linhas sóbrias, aquele que ele vira no showroom numa tarde chuvosa e que não descansara até convencer o cliente a usar. O prazer só era interrompido ao notar a maldita janela à qual tiveram que acrescentar a guarda estúpida, mas porquê? Pela enésima vez, recriminou-se por não ter insistido mais ainda, por não ter convencido o cliente da futilidade daquela guarda malfazeja.

Estes luxos de sexta-feira davam-lhe uma força extra para enfrentar o fim de semana. Quando ouvia os colegas entusiasmarem-se com a chegada dos seus dias de liberdade ele entristecia-se, calava-se, saía da sala. Os prazeres que o fim de semana lhe trazia eram o usufruto do seu andar impecável, a limpeza cuidada ao Sábado de manhã, seguida de um passeio no bairro manicurado, feito de outros blocos de apartamento semelhantes, que apesar de desenhados por outras pessoas, eram quase indistinguíveis. Aos olhos de Elias, no entanto, eram completamente diferentes, aquele ali tem varandas de betão, o outro acolá tem as janelas mais estreitas, aqueloutro mais à frente aventurou-se pelos caminhos dos painéis de tijolo rendilhados – tijolo-buraquinho-tijolo-buraquinho – para tapar a vista e deixar passar o ar.

Mas os dois dias eram sempre longos de mais. Com a casa limpa e arrumada, os mantimentos para a semana amorosamente arrumados nas prateleiras, os websites de arquitectura consultados e comentados, os artigos sobre construção relidos duas ou três vezes, encontrava-se sem nada para fazer. Por vezes via um filme, lia um ou outro livro, passeava pela cidade notando edifícios e espaços públicos. Por vezes caía na armadilha do telemóvel, e ficava horas em artigo-puxa-artigo, imagem-puxa-imagem, até se sentir enjoado, o coração a bater acelerado com as horas de vida que acabara de perder para sempre.

Era com algum alívio que via o pôr do Sol de Domingo aproximar-se. Escolhia as roupas para o dia seguinte, arrumava a pasta, preparava a marmita com o almoço e ia-se deitar. Esticado na cama de pinho, adormecia lentamente, ajudado pela voz calma e sussurrante que saía do telemóvel. “Imagine warm sunshine over your body… Let your muscles relax…”

Às sete da manhã, o alarme tocava de novo.

 

jothemonster.com

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