Editorial

A IMITAÇÃO DO MEDO E A SÍNDROME DE UM “MUNDO DOENTE”
Pedro Costa

Pedro Costa

Pedro Costa

Sociólogo e Investigador no CECS (Universidade do Minho)

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Samuel Veissiere, antropólogo cognitivo evolucionário na faculdade de medicina da McGill University no Canadá, já depois da pandemia de Covid-19 ser decretada, alertava-nos para os riscos do pânico moral. Nos seus termos, uma epidemia cognitiva (ou “infodemia”, epidemia de informação) avizinhava-se mais perigosa do que uma epidemia imunológica.

Na sua ótica, com um excesso de informação circulante, sobretudo na internet, havia-se instalado uma cultura de pânico e medo. Ante um gatilho de negatividade acionado por um vírus desconhecido e em expansão, e durante a primeira pandemia acompanhada por uma conexão global sem precedentes, eis que um instinto de sobrevivência teria falado mais alto: “os humanos tendem a ser obcecados com qualquer coisa que transmita informações sobre ameaças potenciais por razões óbvias de sobrevivência. É melhor supor que um pequeno som de vibração num arbusto seja um tigre a vir na nossa direção, mesmo que na verdade não seja nada” (https://www.tsf.pt/portugal/sociedade/o-panico-moral-esta-a-espalhar-se-infelizmente-).

Ao “viés humano pela negatividade”, juntaram-se vários elementos de legitimação de medo e pânico: por um lado, o efetivo crescendo de infetados e mortos, comunicado diariamente pelos governos em tom de guerra e numa lógica nunca antes vista; por outro, as comunicações erráticas das organizações de saúde, os governos e respetivas medidas proibitivas, um avassalador número de fake news mostrando fotografias de Lampedusa 2013 mas supondo Bérgamo 2020 (entre outras) e milhares de opiniões contraditórias nos média. Resultado: uma histeria coletiva desproporcionada, acelerada e dinamizada sobretudo nas redes digitais, a exigir tomadas de decisão drásticas, inclusive exigindo a perda de liberdades e direitos (desde confinamentos a estados de emergência). Eis que uma espécie de síndrome de um “mundo doente” (por analogia à síndrome de “mundo mau”, de Gert Gerbner) tomou o governo da coisa pública.

Nos primeiros dois meses de 2020, pouco se sabia sobre o Cov-Sars 2. O discurso inicial era o de um vírus com letalidade elevada e altamente contagioso. Era necessário evitar infeções para não provocar ruturas de sistemas de saúde. Utilizando a metáfora de Veissiere, era melhor supor que no arbusto estava realmente um “tigre” do que não o supor. Foi o que fizeram as organizações de saúde, lideradas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) que a 11 de março de 2020 decreta pandemia. Por esta altura, estavam confirmados 118.000 casos em 114 países. Existiam 4.291 mortes oficiais (https://eco.sapo.pt/2020/03/11/oms-decreta-coronavirus-como-pandemia/).

No caso português, o estado de emergência foi decretado no dia 18 de março de 2020, sete dias depois da OMS considerar pandemia. Antes, a 15 de março, o Presidente da República, Marcelo Rebele de Sousa, teria comunicado por videoconferência a António Costa a intenção de declaração de estado de emergência. De acordo com o ‘Observador’, o Primeiro Ministro, António Costa, declarava nessa altura ser prematuro. No entanto, “a pressão social para medidas mais restritivas, que este estado de exceção permitiria, é muita nesta altura e a hipótese está em cima da mesa” (https://observador.pt/2020/03/16/o-que-e-o-estado-de-emergencia-e-como-funciona/).

Essa pressão foi efetiva: contam-se pelo menos 10 petições online diferentes a exigir o estado de emergência em https://peticaopublica.com/. Três dias depois, juntamente com os Conselheiros de Estado, ficou decidido o estado de emergência nacional. No mesmo dia, teria havido a segunda morte em Portugal por Covid-19, depois de um primeiro óbito a 16 de março – um idoso de 80 anos com outras patologias.

As grandes forças de imitação para Portugal vieram de Itália, Espanha e França, que tinham por esta altura centenas de mortes, devido ao atraso na deteção do primeiro caso de coronavírus – em Itália, é hoje certo que o vírus já circulava em janeiro na Lombardia, sendo só detetado pelas autoridades de saúde a 20 de fevereiro (https://visao.sapo.pt/visaosaude/2020-03-28-covid-19-surto-em-italia-nao-foi-detetado-durante-semanas/). A primeira morte na Europa, a 02 de fevereiro em França, era já o pronuncio de um elevado número de casos na Europa por detetar. Antes do pânico se instalar, já o vírus era uma ameaça.  

Entre os países europeus, Reino Unido e Suécia optaram por imunidade de grupo. O Reino Unido acabaria por ceder, posteriormente, tornando-se célebre o facto do seu primeiro-ministro, Boris Johnson, ter apanhado Covid19. Mas a Suécia não. Apesar da forte contestação de uma parte da comunidade sueca, as autoridades decidiram não imitar o modelo dos restantes parceiros europeus. Johan Giesecke, professor em Estocolmo e consultor da Agência de Saúde Pública da Suécia que ajudou a definir esta estratégia em sentido contrário, explicou ao jornal Público as suas razões: “Nenhum país europeu tinha uma estratégia de saída quando instalou as medidas de confinamento”. Para este, “quando olhamos para as restrições, há apenas duas que têm apoio científico: a primeira é ‘lavem as mãos!’, conhecida há 150 anos; a segunda é manter alguma distância das outras pessoas. O resto, como fechar as fronteiras, encerramento das escolas, não é muito certo que ajude. Muitas das medidas que foram tomadas pelos países não têm base científica” (https://www.publico.pt/2020/05/03/ciencia/noticia/johan-giesecke-epidemiologista-sueco-numero-mortes-covid19-sera-quase-paises-europeus-).

Hoje, passados dois meses do início do estado de emergência em Portugal, escolho três dados (dados da Worldometers a 18 de março de 2020) que nos devem levar à reflexão:

  1. Que em todo o mundo existem 320.434 mortos por covid19;
  2. Que Portugal, com confinamento obrigatório e fecho de escolas a 12 de março, tem 1231 mortos por Covid19;
  3. Que a Suécia, que adotou apenas medidas ligeiras de distanciamento físico, tem 3698 mortos por Covid19.

 

Sobre o ponto 1, importa esclarecer que, de acordo com a OMS, cerca de 650 mil pessoas morrem anualmente em todo o mundo por doenças respiratórias relacionadas com a gripe (https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-12/doencas-relacionadas-gripe-provocam-ate-650-mil-mortes-por-ano-no-mundo). Este ano, acrescem cerca de 320 mil pessoas por Covid19.

Relativamente ao ponto 2, e se atentarmos aos dados do relatório do Programa Nacional de Vigilância da Gripe na época 2018/2019, verificamos que os números da mortalidade atribuídos à gripe foram de 3331 pessoas. Já em 2017/2018, morreram 3700 pessoas. Assim, com as mortes por Covid19 em Portugal, acrescem 1231 pessoas. No entanto, de acordo com o gráfico 1, é possível perceber que o número de mortes totais em Portugal continua dentro de valores esperados. 

 Gráfico 1. Dados do Ministério da Saúde compilados

 

Relativamente ao ponto 3, importa recordar que Suécia e Portugal se aproximam no número de habitantes: 10,23 milhões e 10,28 milhões, respetivamente. Se pensarmos que com medidas ligeiras e sem confinamento obrigatório a Suécia tem atualmente 3698 mortes, Portugal nas mesmas condições poderia ter valores aproximados, o que seria o equivalente à época gripal de 2017/2018. Com uma diferença: trata-se de uma sobreposição. Dois vírus em simultâneo na mesma época poderiam gerar efetivamente sobrecarga nos sistemas de saúde. Felizmente, ficamos muito longe de uma sobrecarga.

Vemos no gráfico 2 que mesmo sem confinamento os resultados suecos são mais satisfatórios do que os de Espanha, que adotou confinamento. A questão não estará tanto no confinamento, mas mais na prevenção inicial da epidemia e no isolamento implacável dos segmentos de risco – como é o caso dos Lares e residências séniores, onde se verifica cerca de 40% das mortes em Portugal. 

Gráfico 2. Dados da Euromomo (https://www.euromomo.eu/graphs-and-maps/)

 

A questão que agora paira, após os resultados atuais e em fase de rescaldo, é se se justificaria a adoção de medidas tão drásticas. Ou melhor, após as informações existentes, será que tudo seria feito do mesmo modo? Não restam dúvidas da aprendizagem geral motivada pela Covid19. Porventura um confinamento mais segmentado e tendo por base o foco em grupos de risco poderia ter sido uma solução intermédia, com efeitos menos nefastos nas dimensões socioeconómicas e da saúde: para além de se saber que as pessoas com salários a rondar os 650 euros estão hoje em severas dificuldades financeiras, também se sabe que entre março e abril de 2020 se registaram mais 1255 mortes, sendo que 51% não se devem ao Covid19 mas antes às dificuldades de acesso ao sistema de saúde, ou por medo ou devido ao excesso de zelo na adoção de medidas de controlo da Covid19 (https://observador.pt/especiais/entre-marco-e-abril-registaram-se-mais-1-255-mortes-em-portugal-do-que-o-esperado-diz-estudo/).

É aqui que se revela o lado perverso da coisa: o histerismo coletivo, motivado pela imitação do medo de uma maioria globalizada, gerou uma pressão social impedindo ações mais estratégicas e porventura mais eficazes a médio-longo prazo. Pelo contrário, originaram-se restrições legais ao normal funcionamento dos modelos socioeconómicos e de saúde. A imitação do medo de uns pelos outros gerou a síndrome de um “mundo doente”. Ora, tal como todas as síndromes, trata-se de uma inflação à real dimensão do problema, levando vantagem sobre outras posturas.

Estas conclusões são corroboradas pelos resultados dos testes sorológicos da Fundação Champalimaud a que a Ordem dos Enfermeiros se associou. Nestes, concluiu-se que o número de Enfermeiros e assistentes operacionais que foram infetados com Covid-19 foi, no caso do Hospital de Santo António, no Porto, 10 vezes superior ao número identificado anteriormente, e 11 vezes superior no caso do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Extrapolando estes dados para o resto do país, significa que o número de assintomáticos é muito superior ao que se pensava e que, por relação, o número de infetados em Portugal é porventura 10 vezes superior aos cerca de 29.209 oficialmente infetados (o que nos daria cerca de 290 mil infetados). Isto significa que, em relação inversa, há uma redução em 10 vezes do valor perigo deste vírus. Teríamos assim uma taxa de letalidade de 0,4%, ligeiramente superior às taxas de letalidade do vírus da gripe (https://www.ordemenfermeiros.pt/noticias/conteudos/testes-sorol%C3%B3gicos-mostram-que-n%C3%BAmero-de-profissionais-infectados-%C3%A9-dez-vezes-superior/).

Uma outra pergunta que importa responder é: foram as restrições políticas de confinamento, impostas pelos governos, eficazes na luta contra a pandemia? De acordo com Elaine He, não. Há pouca ou nenhuma correlação entre a severidade das restrições de uma nação e o resultado de contenção de mortes por Covid19 (https://www.bloomberg.com/graphics/2020-opinion-coronavirus-europe-lockdown-excess-deaths-recession).

É fácil escrever isto hoje, depois de novos dados confirmados. Mas façamos um exercício de especulação: e se as redes sociais digitais não existissem? E se coletividade humana não tivesse os instrumentos digitais que tem hoje para construir conteúdos para alimentar esse “viés de negatividade”? E se as informações circulantes não fossem tantas e tão emotivas como caixões em transporte, vizinhos que cantam a melancolia à janela, fake news que dão conta de que o vírus é terrivelmente mortal? Teria havido toda esta pressão? Toda esta imitação de práticas e políticas?  

Por outro lado, terá sido esta pandemia uma escola para uma nova abordagem face ao combate das alterações climáticas? Teríamos percebido sequer o mal que provocamos no planeta ao verificarmos a redução drástica da poluição pelo simples facto de termos parado um mês? Será, no futuro, a paragem de um mês por ano em todo o mundo uma solução para a redução drástica da poluição e do controlo do buraco na camada de Ozono? Teremos, no futuro, cuidados e medidas mais equilibradas?

Percebe-se o seguinte: o viés pela negatividade gera também novas estirpes de síndromes de “mundos maus”, dando a ideia de que tudo é pior do que na realidade é. Sobretudo na era das imagens, das montagens e das redes digitais hiperglobalizadas. O medo está sempre pronto a ser imitado. Os vírus fazem adoecer, sim, mas a imitação histérica do medo é ainda mais perigosa. Desemprego, falências e fome são já nossos vizinhos (https://www.dnoticias.pt/pais/fome-falencias-e-drama-social-causados-pela-covid-19-em-destaque-na-imprensa-nacional-DY6177588). No final, descobriremos que a Covid19 não era uma simples gripe, mas também não justificava a radicalização de que foi alvo.  

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