Inconstância do Direito

A instabilidade jurídica que, modernamente, percorre a vida em sociedade, podendo, em parte, ser provocada pela complexidade de situações sociológicas, económicas, financeiras e axiológicas, não deve, contudo, afetar projetos pessoais, empresariais e institucionais, elaborados na base da confiança entre as partes e nos fundamentos da Lei.

Se assim não acontecer, corre-se o risco de ninguém querer investir, trabalhar, economizar para obter bens essenciais à própria dignidade humana, por exemplo, obter habitação própria (preceito constitucional) para depois lhe ser cobrado um imposto que, em muitos casos, até é superior a uma renda de uma casa alugada.

A segurança do Direito deve, sempre, garantir a aplicação da norma, tal como ela foi apresentada e aceite pelas partes, quando se inicia um projeto, uma atividade, o início de uma carreira profissional, um período de aposentação, seja uma reforma, seja uma pensão, não pode ser alterada negativamente, por conveniência de outros interesses, de resto, toda a norma jurídica vale para o futuro, e só quando é mais favorável ao cidadão é que terá efeitos retroativos, aliás, isto mesmo preveem as leis penais.

A vida é como um jogo, que em cada fase e atividade se inicia com determinadas regras, que são cumpridas pelas partes, e se não o forem haverá sanções. Tal como em qualquer outra competição, não se pode, nem deve, mudar regras a meio do jogo, exceto se tais mudanças implicarem benefícios para os “jogadores”, na circunstância, para os cidadãos. Se assim não for, poder-se-á estar perante decisões ilegítimas, ilegais e de abuso do poder.

Iniciar uma qualquer atividade com determinadas regras jurídicas, que as entidades públicas, legislativas, executivas e fiscalizadoras obrigam a que sejam cumpridas, e que ao longo desse exercício, a pessoa, o profissional, a empresa, as instituições em geral, são obrigadas a cumprir e, em circunstância alguma deve alterar, unilateralmente, aquilo que também, unilateral impôs de início. Há um mínimo de rigor, de lealdade, de confiança e de decência que, ética e moralmente, se exige seja cumprido.

Nesta linha de pensamento, os cidadãos projetam as suas vidas, o seu futuro, também, e ainda que parcialmente, o de seus dependentes e descendentes. A pessoa constrói um projeto de vida em função do que lhe é oferecido, do que lhe é exigido, que ela cumpre rigorosa e pontualmente porque, mais à frente na vida, sabe que vai precisar de determinadas condições, benefícios materiais, que previamente acordou, com a outra parte, vir a receber, por exemplo, na velhice, mas, de repente, tudo lhe é retirado, com a alegada “emergência nacional”. Verifica-se, assim, uma quebra de confiança provocada pela parte mais forte: o Estado.

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Convém referir que o “estado de emergência” é uma figura constitucional: «2. O estado de sítio ou o estado de emergência só podem ser declarados, no todo ou em parte do território nacional, nos casos de agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública» (CRP, 1976:Artº 19º), que nada tem a ver com a emergência económica, portanto: suspender ou retirar direitos que foram adquiridos, parece uma grande injustiça, para além de, eventualmente, inconstitucional.

A insegurança do Direito conduz às falências pessoais, empresariais, económicas e financeiras. Ninguém vai investir num projeto cujas regras são unilateralmente eliminadas, ou substituídas por outras mais severas, injustas e, quantas vezes, irregulares.

Como é possível: que a um trabalhador que paga coercivamente os seus impostos; que contribui para uma segurança social, assistência médica e medicamentosa; que desconta para ter outros benefícios, para uma velhice relativamente tranquila, de repente se veja sem esses benefícios que subscreveu, com a outra parte, no início da sua atividade profissional? Não é leal, nem justo “alterar as regras a meio do jogo”, porque isso equivale a um autêntico “logro”, com a agravante da parte prejudicada não se poder defender.

As decisões unilaterais, autoritárias, prepotentes e violentas não são próprias de uma sociedade civilizada, democrática e defensora dos mais elementares direitos humanos e, quando se verifica a imposição do mais forte, regride-se ao tempo das cavernas, em que os mais poderosos têm o domínio completo sobre os mais fracos, que não têm recursos para se defenderem.

A sociedade atual, em muitos países, bem poderá equiparar-se a uma selva, onde a lei do mais forte, do “quero, posso e mando” é a que prevalece, com base na fraqueza de um Direito instável porque, rápida e frequentemente, alterável, em função de interesses alheios: ao bem-estar do povo em geral; e dos mais fracos em particular, com a agravante de que algumas entidades fiscalizadoras, que deveriam ser as primeiras a zelar pela segurança do direito, nem sempre conseguem cumprir a sua missão, com solidariedade e lealdade para com os contribuintes mais desprotegidos.

A instabilidade do Direito é, ainda, mais preocupante, quanto é certo que quando ocorrem alterações na legislação, elas contemplam um conjunto, por vezes muito vasto, de exceções e, quando se trata da perda de benefícios e direitos adquiridos, aquelas exceções, com alguma frequência, abrangem quem já tem imensos privilégios.

Em bom rigor são, praticamente, sempre os mesmos a suportar as medidas mais penosas: trabalhadores, reformados, pensionistas, desempregados, excluídos, imigrantes e de etnias diferentes. Além desta inquietante insegurança do Direito, ainda acresce a discriminação negativa, ou seja: os privilegiados e protegidos continuam, na sua maioria, incluídos nas exceções para os benefícios e direitos adquiridos, mantendo-os ou até reforçando-os.

Pode-se afirmar que há uma grande falta de solidariedade e de lealdade daqueles que prometem, e depois não cumprem. A palavra de honra, que em termos de honestidade, valia mais do que qualquer escritura, hoje, ao que parece, é apenas um “valor” para estratégias de sedução: empresarial, financeira, política, religiosa e outras atrações.

Bibliografia

BÁRTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2012). Direitos Humanos: Alicerces da Dignidade. 1ª Edição, Lisboa: Chiado-Editora.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, (1974), Versão de 2004. Porto: Porto Editora.

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1 comentário

  1. Exmo Senhor
    Diretor do Jornal Minho Digital
    Dr. Manso Preto.
    Muito obrigado pela publicação do meu artigo: “Inconstância do Direito”
    Pena não poder publicar duas crónicas por mês!!!
    Bom fim de semana

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