Morte na Aldeia

Uma Crónica de Eugénio de Sá.

Isto morre um, e é como se, com ele,

morresse um pedaço de cada um dos outros, que ficaram.

 

Quando alguém morre na aldeia, toda a população entra em vigília, pelo respeito aos mortos e pela amizade aos vivos, companheiros de anos e de desgostos.

O abandono pelos seus, pelas duas gerações que os sucederam e que se foram embora, uma a reboque da outra – entretanto ocupados em gastar o que ganham na grande cidade –  torna-os mais unidos. E a perda de um deles não se confina aos que lhe são chegados por família; é perda colectiva, é mais um vazio nas suas vidas já tão esvaziadas de objectivos e de alegrias.

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Anciãos, trôpegos quase todos, pelos forçados descuidos do trabalho sem tréguas, parecem ainda mais velhos do que são. Lá se vão arrastando pelas ruas do povoado, num ruído surdo de bengalas gastas, em triste convergência para a pequena igreja onde os leva a obrigação e o respeito.

É lá que começa a despedida ao finado, cumprindo-se o respeitável ritual do desfilar de memórias e de sentimentos, ao longo de toda a noite, em alternância com grandes e eloquentes silêncios, até que o dia chegue. É lá que prossegue o ciclo imparável do despovoamento.

As flores acumulam-se, compradas com o pouco de quem nada tem. E ainda se reza na Aldeia, ainda se confia a Deus, com fé, a alma do que parte.

Já não serão todos primos e primas – como verseja a popular cantiga – mas todos se conhecem e (quase) todos se respeitam, estimam e entreajudam, num exemplo inútil aos ausentes.

Falta-lhes tudo; os remédios e o médico a horas e até o Pároco, que lhes ouça os pecados e as queixas, que reparta, com eles, o pão e o sangue de Cristo e que, ao menos na morte, os acompanhe e os encomende a Deus, como deve ser.

Ao fim e ao cabo, são eles os últimos bastiões da defesa e da prática dos valores mais altos alguma vez conquistados por esta decadente civilização, cujas motivações colectivas maiores são… aquelas que justificam as maiores audiências das Televisões.

Que se pense nisto com respeito pela nobre gente que resiste ainda nas Aldeias abandonadas do interior deste país.

 

“Avante! – Os mortos ficarão sepultos 

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mas os vivos que sigam sacudindo

como o pó da estrada, os velhos cultos”

(Antero de Quantal)

 

( Prémio Jornal Diário de Noticias para a Melhor Crónica de Domingo – ano 2000 )

Poesia

TRISTE MORRER

 

Com um ruído de bengala gasta

Pela calçada se arrasta o velhinho

Move-o a morte que lhe foi madrasta

Ao levar deste mundo o seu vizinho

 

Porque no abandono pelos seus

Mais lhe não resta que amar os amigos

E os lembrar, chorando, os apogeus

Que como os seus se vão quedar esquecidos.

 

Vela o velhinho e chora o companheiro

Que ali cumpre já frio preceito antigo

Até que o dia nasça soalheiro;

 

E à terra torne que em pó o tornará

Como destroço inútil desta vida

Porque valor não tem quem cá não está!

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