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“No centro de Melgaço, ninguém sabe o que é ‘alumiar a São Tomé'”

Capela

Em Penso, abrem-se caminhos terrenos e contam-se histórias de milagres de São Tomé.

Manuel Pereira, Paulo Marques e David Pereira, três dos quatro mordomos da Comissão de Festas de São Tomé 2015/2016, deram voz a uma vontade do povo que a emigração, a crise económica ou algum desinteresse foram deixando cair.
A obra era de monta: Era preciso convencer um operador de máquinas a rasgar serra acima, ao longo de quase seis quilómetros, uma estrada que ligasse o centro da freguesia de Penso ao alto do monte de São Tomé, onde a capela do mártir desafia as ventanias, as trovoadas e não raras vezes os incêndios que tem devorado a floresta circundante. Para o efeito, era preciso convencer a população da freguesia – ou grande parte dela – diversas entidades locais e até o empreiteiro de que a obra não era megalómana, mas sim concretizável. E pagável.

Ao apoio do povo, que foi colaborando com a sua ajuda monetária, foram-se juntando as entidades essenciais para a ‘luz verde’ ao projecto: Comissão de Baldios, Junta de Freguesia, Confraria das Almas, gradualmente, as máquinas foram removendo terra, cortando lage e abrindo regos para criar uma via transitável de carro do pé ao topo da serra sem sair da área administrativa da freguesia.
Dos vinte mil euros orçamentados para a execução da obra, os mordomos apontam para um cumprimento do pagamento na ordem dos setenta por cento e crêem que a vontade popular motivará outros, e mesmo as entidades, a reunir fundos para cumprir o pagamento na totalidade.
Mas o caminho é só para uma capela? Não. É uma via de ligação a outras vias de montanha, que ligam às freguesias vizinhas e é um recurso valioso enquanto corta fogo e até de circulação de veículos de combate a incêndios numa zona que ainda agora recupera do último grande incêndio do Verão de 2015, que dizimou milhares de pinheiros novos.
De lá de cima, espalha-se a vista em redor e vê-se até onde a acidentada geografia minhota permite, mas aqui é-nos especialmente favorável. Como num miradouro, em dia soalheiro contempla-se território melgacense, com a freguesia ali aos pés, a vizinha Galiza, desde as povoações junto ao rio Minho até ao topo das montanhas e uma vasta extensão do rio Minho, que leva destas terras o excesso da água que nos faz ter um território tão verde e orgânico. Se quisermos mudar de ponto de observação uns quinhentos, oitocentos metros, veremos já território do concelho de Monção.

A capela, asseada, por dentro, limpa e robusta por fora, é um bloco de granito resistente ao tempo e até às investidas humanas. Histórias que o povo conta, umas serão lenda, outras não, deixam bem claro que foi mais do que uma as tentativas de roubo da imagem de São Tomé por parte dos brandeiros daquele monte porque, em tempos em que a linha de divisão territorial das freguesias ainda fomentava discussões, consideravam que o santo era propriedade sua.
Astutos e de engenhosa ideia, os locais, em tempos que se perdem na cronologia (ou que os testemunhos vivos não conseguem precisar) construiram naquele alto uma capela de tecto em pedra abobadada, vedando, como se de um cofre forte se tratasse, os intentos de quem encetasse pelo telhado a missão de espoliar os de Penso da sua venerada imagem.
Manuel Cordeiro, de 79 anos, fez desta freguesia o seu lar ao longo da sua vida e as histórias ou lendas sobre as tentativas de roubo da imagem de São Tomé são já parte do reportório de histórias. Uma delas visa os de Cousso que, quando “queria ficar independente, queriam levar o santo e queriam leva-lo no meio de um carro de mato”.
À luz da realidade de hoje, como sabemos que nem São Tomé arredou do alto da serra nem a freguesia se desleixou no esmero ao mártir, são as obras recentes e até as futuras, focadas na melhoria de condições no local e de aproximação da comunidade à capelinha, que indagamos a comissão de festas em exercício.
No dia da festa, em Agosto, a procissão é (e será, a manter-se o caminho) um teste à devoção religiosa de cada um dos integrantes. Ao longo de mais de duas horas, a procissão segue “a bom passo” desde a igreja paroquial até à capela. Hoje, até os mais idosos podem ir até ao monte de São Tomé, levados por um caminho pago também por si ou pelos seus, o que tornará a viagem mais satisfatória.

“Viva o velho e viva o novo” no ‘alumiar’ a São Tomé

Alumiar a São Tomé é um ritual que também se perde por entre os pergaminhos da História. Será pra ‘alumiar’ o caminho a São Tomé, mas para quem ainda hoje pega no feixe de palha centeio para pôr a arder o significado já não é tão claro.
“Lembro-me disto desde sempre”, observa Manuel Cordeiro, que ao longo da sua vida persistiu em manter a tradição tal como lhe foi passada. A tradição manda que seja a 20 de Dezembro e com pequenos molhos de palha centeio – as ‘fachuqueiras’, e deixamos a palavra em destaque para a pormos à observação de qualquer correcção, embora nos pareça de influência galega – mas hoje alguns participantes que não têm centeio tomam alguma liberdade no material a colocar em combustão.
Assim, a cada 20 de Dezembro, mal a penumbra se faça notar, o que geralmente acontece entre as 17h e as 18h, os moradores saem de suas casas e, colocando-se em lugares de franca visibilidade, começa a queimar a palha centeio (o colmo) e a entoar as frases que a tradição mandou.
“Algumas das pessoas que ainda hoje semeiam centeio é mais por essa tradição”, refere Manuel Pereira. “E para chamuscar o porco”, reforça Manuel Cordeiro que, como ancião, sabe quando elevar a mística dos hábitos populares da sua gente, mas também ser pragmático.
Por isso, não há discórdia na aceitação de eventual adaptação do alumiar a São Tomé nas gerações futuras, para quem o cultivo do centeio poderá afigurar-se trabalhoso, dado o reduzido uso que hoje se dá ao cereal e à palha em questão. “Se não for com centeio, pela preguiça de o semear, há-de ser com outra coisa qualquer, desde que arda. A tradição acho que não se perderá”.
David Pereira, 26 anos, assume neste circulo o elo de ligação entre a geração que recebeu a tradição e a fez cumprir tal como a recebeu e a geração que virá, sensível ou não ao ritual popular. “Havendo lume já é tradição”, atira o jovem mordomo.
Mas não é tudo. Além da particularidade das ‘fachuqueiras’, que terão de ser de palha, há ainda as frases, a entoar bem alto aquando da queima da palha: “Viva a São Tomé”; “viva o velho e viva o novo” e ainda o “viva o de cima e viva o de baixo”. Algumas proporcionam uma troca de diálogo (a altos berros, como se pode imaginar) entre lugares da freguesia se entre eles a visibilidade for boa e a capacidade vocal dos intervenientes estiver à altura.
Há quem diga que, do lado galego, a 20 de Dezembro também se acendem as ‘fachuqueiras’, seja porque alguns melgacenses casaram lá, seja porque a tradição de alumiar a São Tomé também signifique algo do outro lado do rio Minho. David Pereira diz, com alguma segurança, que este pitoresco hábito das gentes de Penso pouco passará para lá da freguesia. “Nas freguesias mais vizinhas fala-se disto, mas lá para o centro, na vila e assim, pouca gente conhece”.
Apesar disso, os acontecimentos insólitos em torno de São Tomé e da sua capela continuam a deixar sem explicação fácil alguns fenómenos, algo que só a capacidade milagreira do mártir pode explicar sem delongas. Os testemunhos, estes ainda vivos, pois alguns ainda são recentes, garantem que foi mesmo assim. Um dos casos é de imposição da vontade divina: Contam que, no dia da festa, despois das cerimónias religiosas, os festeiros fecharam a porta da capela para irem almoçar, garantindo desta forma que, na sua ausência, alguém se sentisse tentado pela caixa das esmolas. Pois tal decisão não terá agradado ao santo, tendo deflagrado sem qualquer aviso nem indício no horizonte que justificasse uma trovoada seguida de uma chuvada que estragou o merendeiro festivo aos que ali se deslocaram.
O segundo caso remonta, asseguram os mordomos, há cerca de oito anos. Num Agosto aziago, propenso a incêndios, o lume lavrava encosta acima, destruindo desarvoradamente e em poucas horas mais uma tentativa de florestação da encosta. Quem via de longe já rezava a São Tomé para que pusesse fim a tal inferno, e havia quem garantisse que aos Bombeiros, já posicionados junto à capela, pouco mais restava para travar as chamas. Pois assim aconteceu. O dia de céu limpo em poucos minutos ganhou uma camada de nuvens. O ribombar de trovoada ecoou apenas uma vez e em menos de dez minutos, o incêndio estava apagado.
“Estamos só aqui nós e temos estas para contar, mas se estivessem aqui dez ou vinte pessoas, certamente cada uma teria a sua experiência ou devoção”, garante Manuel Pereira, para quem é inegável a capacidade milagreira de São Tomé e a inquestionável devoção do povo da freguesia.
O que nos ficou por contar? Ah, a ementa obrigatória deste dia de alumiar a São Tomé: Bolo da pedra e sardinhas. Hoje, a sardinha é um pitéu mais difícil de fazer chegar a estas paragens, mas a tradição vem do tempo em que vinha em camiões. “Dantes vinha um camião distribuir e as mulheres iam pelas freguesias distribuir, não podia falhar”, recorda Manuel Cordeiro.
Quanto aos futuros projectos, muito se perspectiva para aquela zona circundante à capela de São Tomé. Oportunamente daremos conta deles, na certeza de que a visita da população irá motivar a concretização de algumas ideias desta comissão.

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