A primeira coisa que fiz depois de me levantar da cama foi ligar a televisão, como já era hábito desde que me reformei. A notícia em destaque era que o livro As Intermitências da Morte, de José Saramago, tinha esgotado em todas as livrarias, sem que ninguém compreendesse a razão para isso acontecer de um dia para o outro.
Como já tinha lido o livro, e apesar do interessante debate sobre como Saramago imaginou o caos gerado na sociedade pelo facto de de repente ninguém morrer, tirei os olhos da televisão e fui até à caixa de correio verificar se o vale da minha pensão tinha chegado. No entanto, a caixa estava vazia. Fugi do frio, voltei para a sala, e, agora, a notícia em todos os canais era que a Segurança Social não tinha dinheiro para pagar as pensões. Estranhei, pois, segundo o último balanço, o saldo da Segurança Social era positivo, graças à imigração. Não podia ser mentira. O meu pai dizia-me o mesmo sobre a importância dos imigrantes na economia alemã quando emigrou para a Alemanha e trabalhou numa farmacêutica, em que lidava com produtos químicos tão perigosos que os alemães não queriam trabalhar lá, muito menos pelo salário pago aos imigrantes. “Na fábrica da Merck, os alemães não borravam as mãos”, dizia-me ele.
Entretanto, senti uma dor no peito. A ansiedade é minha companheira de longa data, mas, por precaução, decidi ir ao hospital perto de casa para ser examinado por um médico. Ao contrário dos outros dias, as ruas estavam sujas e desertas. As poucas mercearias abertas quase não tinham frescos e nas prateleiras só havia enlatados. O cheiro a pão quente, habitual pela manhã, ainda não tinha acordado. Tudo me parecia estranho. Contudo, continuei a andar até ao hospital. À porta, encontrei um mar de gente, maior do que o costume. Tudo portugueses. Eram, na sua maioria, idosos; crianças, nenhuma. “Os portugueses também não têm filhos”, pensei. Estranho dia aquele, sem dúvida. Tudo diferente, sem razão aparente como a dor no peito que nunca tivera.
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Enquanto aguardava na fila, senti um mal-estar mais intenso e perdi os sentidos. Quando voltei a mim, estava numa maca no corredor do hospital. Disseram-me que havia desmaiado, que estava estável, mas que teria de aguardar os resultados dos exames. Não sabiam quando ficariam prontos, porque o médico que os requisitou estava muito ocupado. Ocupado ao ponto de andar a empurrar as macas de outros doentes, devido à falta de pessoal. “Falta de pessoal? Mais uma greve?”, pensei. Nada a fazer, só esperar e aguentar. Enquanto isso, o meu estômago começou a dar horas. Pedi um copo de leite e um pão, a ninguém. E o leite e o pão não vieram. Do teto, caiam pingas de água nos meus pés, e ninguém queria saber. Não porque eu não tivesse reclamado, mas porque não havia a quem reclamar e aquela gente atarefada de bata branca e estetoscópio ao pescoço não conserta canos. O tempo estava a passar e eu estava a ficar impaciente. Não era só eu, eram todos que por ali estavam, doentes e os que estavam a trabalhar ou a tentar trabalhar. O que se ouvia em burburinho, para explicar aquela azafama, era que havia falta de pessoal.
Dia estranho aquele em que as pessoas que eu não costumava ver, agora que tanto precisava de as ver, não as via!
Tudo se estava a complicar. A dor no peito voltara com mais força, e eu ali abandonado no corredor do hospital com gente de ar limpo, estranhamente, a cheirar a morte. Não era habitual, não era a primeira vez que lá ia. O meu vizinho da maca ao lado explicou-me o que se estava a passar: “As senhoras da limpeza, os cozinheiros, o pessoal que metia a mão na massa, não veio trabalhar.” Perguntei: porquê? Ele disse-me que quem fazia esses trabalhos eram imigrantes e que tinham saído de Portugal durante a noite, numa ação combinada pelo WhatsApp, porque não aguentavam mais o racismo e a xenofobia dos portugueses. A brincar, para aliviar a tensão, disse: “Lá se foi a mão-de-obra para o novo aeroporto”. Mas a dor no peito não tinha intensões de dar tréguas, antes de desmaiar novamente, num tom sério, murmurei: “Agora estamos entregues à bicharada”. Acordei noutro local do hospital. O médico, ao meu lado, pediu-me desculpa pela demora e explicou-me que estava a trabalhar há 12 horas seguidas. Surpreendeu-me tanta compaixão, vindo de alguém que eu conhecia pela sua altivez, dentro e fora do hospital. Quando estamos prestes a morrer, mostramos, sem pudor, como somos frágeis e humanos, como qualquer outra pessoa. Nessas horas somos todos amigos, sinceros e emotivos. Apercebi-me que o fim estava a chegar, uns por doença outros por cansaço.
Perguntei: “Vou morrer, doutor?” Ele respondeu: “Vamos todos. Só Deus sabe quando”. Retorqui: “E o que fizemos para sermos surpreendidos por este colapso?”. Ele suspirou e respondeu: “Não valorizamos os invisíveis, e Deus castigou-nos”. “Castigou-nos?”, insisti. Ele continuou: “Sim, porque lhe viramos as costas”.
Naquele momento, percebi. O castigo não era divino, mas fruto da nossa própria cegueira, da nossa incapacidade de valorizar aqueles que fazem o mundo girar sem se fazer notar. Aqueles que sempre estiveram presentes nas nossas vidas, mas que nunca vimos, estavam agora ausentes. E nós – um povo de imigrantes para quem nos recebeu e recebe – sem eles, estávamos a pagar o preço da nossa falta de memória e da nossa ingratidão!