O alforge

O autocarro, a bagageira aberta recebe o meu alforge, lá dentro tenho todos os meus adereços pessoais: cartão de cidadão, carta de condução, número da segurança social, IBAN bancário, telemóvel, número e código, número da minha rua e da minha porta de casa, conta da mercearia, conta da farmácia, número de andante, e uns míseros trocados.

Enfim, não tenho cabeça para tantos números! Por isso, só o meu alforge sabe das minhas misérias.

Subitamente, cá com os meus botões, deduzo, fui roubado…! Não sei por quê, sem palavras, espreitei a limpo toda a bagageira para o recolher, já lá não estava! Enquanto tentava recolher os dados da memória, caso não o recuperasse! Mas, o que mais me assustou foi o meu bloco de apontamentos com alguns dos meus últimos textos escritos e um livro de poesia autografado.

De repente estou num bar junto de dois amigos, suplico para me emprestarem o  telemóvel para eu ligar não sei para quem, apenas pensava em ligar… enquanto isso, surge um dilema, não me lembrava do número, nem do código… estava muito aflito, por sua vez, o amigo não empresta, alega que era proibido, estava sob escuta, estamos todos sob escuta, dizia-me ele com um sorriso sisudo, – é preciso ter muito cuidado com o telemóvel! Repete o amigo, – não empresto telemóvel a ninguém, e quando falo, falo só para mim, que ninguém me ouça. Reafirma, estamos a ser vigiados, eles querem saber onde estamos, o que fazemos, com quem falamos, até das putas, coitadas, querem saber como se fornica e com quem fornicam! Lamento, tenho medo, não te posso ser útil…

PUB

Estava na rua, andava sem certeza por onde andava, todos os aspectos das ruas eram iguais, estranho, muito estranho! Andava cada vez mais depressa, fazia picos de corrida, cada vez era mais noite, menos gente, vazia, precisava de telefonar, não tinha referências, a não ser as sarjetas e os caleiros cheios de entulho… de quando em quando lá surgiam grupos de três ou mais pessoas esquisitas, tatuadas, inundas de porcaria, não conheciam a água nem o sabão, talvez há muitos dias, talvez desde o último emprego… pareciam-me doentes, viciados em álcool e estupefacientes, prostitutas, e outros marginais… penso que eram felizes… eu não queria nada deles a não ser um telemóvel.

Subitamente sou surpreendido por um carro da polícia, um daqueles blindados anti-motim, ordenam-me a entrar sem explicações, sem saber para onde me levavam, não tinha feito mal nenhum, eu não faço mal a ninguém, a não ser a mim próprio… Afinal, cheguei ao quartel da polícia, levaram-me para uma sela exígua, apenas com uma mesa e uma cadeira, ao centro, uma luz fosca, quase às escuras na companhia de quatro mestres para me interrogarem… um deles muito alto, e forte, que nem um armário, ameaçador, pergunta-me: por que escondeste o telemóvel? Onde está?

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

Inesperadamente, de pijama, dou comigo na varanda da minha casa, no rés-do- chão, de frente para a rua, um gato vadio olha para mim. eu olho para ele, sussurrava-me a noite o silêncio, o gato e eu dentro do tempo ou fora dele, como se nos conhecêssemos ou quisesse dizer: eu não uso telemóvel. Vai-te deitar.

  Partilhar este artigo