Editorial

O ANO DA INTROSPEÇÃO
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Joana Cardoso

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Arquitecta

 

Em 2020, poucos foram os meus pensamentos que encontraram a folha de papel.

Como uma viajante cujo caminho pára, abruptamente, no topo de uma ravina, assim parou o meu mundo. Sem caminho em frente para me guiar, pude ver o que se estendia para além dos meus olhos – montanhas escarpadas e vales sombrios; águas agitadas e lagos sem correntes; o límpido céu azul e o nevoeiro junto ao rio.

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Movida por esta visão, investiguei, perguntei, ouvi e reflecti. Confrontei as minhas ideias que, por serem tão familiares, tinham ganho estatuto de permanentes – e confirmei que mesmo conceitos basilares podem e devem ser questionados, testados, apurados e até assassinados se preciso for.

 

Mas num ano tão pleno de mudança interna e externa não consegui escrever. Os meus pensamentos, no seu estado de fluidez, não se empederniam na rigidez da palavra. Cada frase que eu escrevi foi questionada, rasurada, re-escrita e finalmente apagada. As perguntas eram muitas e as opiniões polvilhadas tornavam ainda mais difícil encontrar a verdadeira resposta. Quanto mais tentava compreender, na sua gloriosa complexidade, este mundo mudado, mais as ideias se moviam e as palavras escritas fugiam como peixes a escorregarem das mãos.

 

Foi apenas quando o ano chegou ao fim que eu, num epílogo apropriado, encontrei a chave que me interrompeu este bloqueio, que não é de escritor mas de pensador – e digo-o com simplicidade, porque todos somos pensadores de vidas, sejam elas examinadas ou não.

 

Vejo o meu filho, que ainda há pouco mal andava, absorvido na procura de tesouros. Toco na parede fria que o sol invernal concedeu em iluminar. Sinto o cheiro terra que acabou de ser molhada, fazendo chlep-chlep sob as solas de borracha, que secará de novo se mais chuva não vier. Oiço o murmúrio distante do oceano de carros, pronto a ser parado ao raiar de novo lockdown.

 

Vivo na realidade tangível, onde todos os pensamentos começam. A vida é palpável, cheia de textura, de cor e de sabor, características concretas mas em constante mutação. A realidade é fluída, pelo que fluídas são as minhas ideias e a minha lógica de viver. Em 2020, o mundo, ao parar, tornou mais evidente o seu constante movimento.

 

Após uma hibernação maravilhada, consigo finalmente voltar a escrever – agora de modo mais humilde, perdoando à partida a efemeridade das minhas palavras.

 

Numa existência feita de surpresas, em 2020 o inesperado chegou-nos em uníssono. Para 2021, sob os desejos eternos de amor, paz e saúde – sim, saúde, mil vezes saúde! – guardo mais um desejo, íntimo e egoísta – conseguir, todos os dias, abraçar sem reservas a realidade da existência, com toda a sua impermanência e imprevisibilidade.

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