Editorial

O Ano em que o Mundo parou
Picture of Pedro Costa

Pedro Costa

Para Jack London, o “ano em que o mundo parou” foi 2013. Em A Peste Escalarte (original de 1912), em jeito de ficção científica o romancista dava conta de uma pandemia que nesse ano havia destruído toda a civilização humana. Por outros motivos, Scott Derrickson anunciava 2008 como “o ano em que a terra parou”, através do filme The Day the Earth Stood Still.

Neste, é contada a história de uma invasão alienígena ao planeta Terra, ainda que o enredo seja inspirado no conto Farewell to the Master de Harry Bates, dirigido por Robert Wise (1951). Finalmente, para Raúl Seixas, músico brasileiro, o “ano em que o mundo parou” foi o de 1977. Nesse, editou o álbum “o dia em que o mundo parou” onde escreveu o profético poema: “No dia em que todas as pessoas do planeta inteiro/Resolveram que ninguém ia sair de casa/Como que se fosse combinado em todo o planeta/Naquele dia, ninguém saiu de casa, ninguém”.

Independentemente das profecias, romanceadas ou cantadas, na nossa era “a terra parou” em 2020. Parou e desestabilizou-se. O jornal Público dá conta do modo como um minúsculo vírus (Covid-19) foi capaz de colocar o “mundo ao contrário”, em que “países mais pobres erguem barreiras aos mais ricos” (Público, 2020, 16 de março).

Por seu turno, o filósofo José Gil (Público, 2020) considera que o que está em causa com a pandemia da Covid-19 são as formações de poder e, com elas, o desenvolvimento de laços sociais cada vez menos aceitáveis. A ideia é a de que esta terrível experiência que estamos a viver constitui apenas uma antecipação, e um aviso, do que nos espera com as alterações climáticas. Ou seja, entramos numa espiral de medo em que, ainda que se acorde a vigilância e os cuidados a ter, se “encolhe o espaço, suspende o tempo, paralisa o corpo, limitando o universo a uma bolha minúscula que nos aprisiona e nos confunde”. Deste modo, comunicar face-a-face com o outro passa a ser “furar a bolha, alargar os limites do espaço e do tempo, tomar consciência de que o nosso mundo se estende muito para além dos quartos a que estamos confinados”.

Já na componente económica, o impacto financeiro da Covid1-19 será “comparável a uma guerra”. Vive-se numa espécie de “estado de urgência” perante a propagação do novo vírus. Terão que ser adotadas “iniciativas para conter e tratar a doença, apoio à liquidez das empresas, particularmente as PME, apoio aos trabalhadores e famílias” – mencionou Mário Centeno à TSF, a 16 de março.

Todo este “medo do contágio” tem sido capaz de “parar o mundo”. Aos poucos, tudo se imobiliza para deixar passar a pandemia. Querendo ou não, a quarentena obrigatória está a ser imposta em todos os países afetados. E isto coloca-nos diante de um paradoxo: para quebrar a corrente de contágio do vírus é necessário cortar a corrente social, tornando o sujeito menos social, quer dizer, atípico. Estes são, portanto, tempos socialmente atípicos.

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

Ora, a questão fundamental já havia sido feita, em 2017, por Bruno Latour: “onde aterrar?”, questionava o sociólogo francês (Où atterrir? Comment s’orienter en politique). O sentimento de estarmos na iminência de “cortar a corrente social” e de perder o mundo é, cada vez mais, coletivo. Este sentimento teria começado com as informações sobre o aquecimento global e sobre as suas consequências. O impacto global das consequências de milhares de ações nefastas ao planeta coloca a questão de que não existem “lugares seguros para aterrar”, e que tudo está assente numa plataforma demasiado instável. Inseguros e desconfiados face a “quase tudo”, os sujeitos regressam cada vez mais às ficções do “Estado-Nação”, na medida em que julgam que o “nacional” vai resolver os problemas de modo solitário, fechado, isolado; ou então é o regresso à dura realidade de se perceber que existem coisas que o humano não controla. De todo. Nesse sentido, a Covid-19 só vem aumentar a angústia pelos sentimentos de impotência e de incapacidade para “gerar”, como disse A. Huxley (1932), um “Brave New World”.

Felizmente, entre o medo e o pânico, ainda existem algumas notícias positivas. A principal é a de que a quarentena possa estar a ser mais benéfica para reduzir a poluição do que propriamente para prevenir o contágio da Covid-19 (Forbes, 2020, 11 de março). O que nos leva a outra questão: não se trata, apenas, de o mundo parar, mas também, e sobretudo, das utopias pararem: “imaginávamos que ela [a Terra] se desenvolveria ad infinitum, sem limites. Mas o sonho de que o planeta se modernizaria indefinidamente nunca foi verificado, não tinha fundamento material” (Latour, 2019, El País, 31 de março).

Ora, tudo isto implica regressar ao planeta do “bom senso”, onde as utopias do crescimento infinito tendem a perder espaço para outras formas e maneiras de ver o mundo, sugerindo assim, consciente ou inconscientemente, novas pistas para problemas globais. O ano em que o mundo parou é, metaforicamente, 2020, na medida em que o surto do coronavírus teve essa capacidade de mostrar a importância de parar, de refrear a utopia do desenvolvimento sem limites, de criar uma angústia tendo por base a impotência. Um minúsculo vírus foi capaz não apenas de suspender o crescimento económico, mas também de imobilizar todo o mundo social, obrigando à dura realidade da reflexão sobre a globalização, sobre a economia, sobre as utopias e sobre a precariedade humana.

Mais
editoriais

Junte-se a nós todas as semanas