O ferreiro

No Lugar onde me criei havia pessoas com muito carisma, único em muitos casos, quer pelas suas excentricidades, quer pela sua maneira diferente de viver a vida.

São muitos, aqueles, que povoam as minhas memórias, todas positivas, e para os quais guardo um carinho muito especial.

Por todos fui acarinhado e, porque não dizer, mimado. Mas isso só mais tarde me dei conta.

Hoje, naquele que foi o meu Lugar, já não existe um só testemunho. A lei da vida foi fazendo a sua implacável ceifa, e agora retenho gratas recordações, que vou partilhando.

O longo consulado de Salazar estava a aproximar-se do fim, mas eu estava a leste de tudo isso.

Aqueles tempos eram simples na vida de uma criança. Nada se questionava e fazíamos tudo, rigorosamente tudo, o que nos mandassem fazer. Isto, para além da obrigação de ir à escola, e à catequese. Pelo meio, sempre que não houvesse trabalho para fazer, servia para brincadeiras musculadas que nos prepararam, fisicamente para a vida.

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Foi uma infância muito feliz.

E, como todas as gerações anteriores, não inventamos nada, copiamos o que vinha de trás.

Para uma parte dos nossos jogos, raramente usávamos brinquedos que não fosse uma velha bola furada, ou uma lima usada, ou de uma ponta de um ferro qualquer. Porém, havia os arcos em ferro, e para esses a coisa piava mais fino.

Ninguém se atrevia a pedir aos pais, que   lhes comprassem o que quer que fosse. Nem sequer nos passava pela cabeça. Não havia e ponto. Brincávamos com o que tínhamos.

Mas, para ter um arco, era preciso ter uma ponta de uma verga de ferro coisa que, na mercearia, não se vendia. Agravava-se, por isso, o desequilibro, entre os que tinham o dito arco, com o respectivo guiador, e aqueles que, embora querendo, não tinham, nem sequer como o conseguir.

Eu era o único que, por causa da profissão do meu Pai, sempre tinha umas pontas de ferro para fazer os ditos arcos. Não todas as que eu queria, mas tinha uma boa colecção de arcos que emprestava aos meus amigos e assim partíamos todos a conduzir os nossos arcos pela berma de estrada deserta.

Pedi-o ao meu Pai e uma vez obtido o pedaço de ferro, o passo seguinte era subir a íngreme encosta até à oficina do Ferreiro, um homem que aprendeu o seu ofício em Angoulême (França) e que por causa da primeira Grande Guerra, regressou à pátria.

Este, era um homem muito temperamental, que explodia facilmente. Por isso, era preciso ter muito tacto na aproximação.

Creio que, entre os meus amigos, eu era aquele que, por razões de vizinhança, tinha proximidade e confiança.

Sabia, por isso, como o abordar.

Eu tinha duas tácticas infalíveis. A primeira era chegar à sua oficina e voluntariar-me para ir às cascas de pinheiro que ele usava para não gastar carvão, na sua forja. Neste caso, usei esta.

“Senhor Artur, nós podemos ir às cascas para si?”

Ele dava três marteladas na sua bigorna; tim, tim, trrim, e encarava-nos, lendo-nos o rosto, ao mesmo tempo que dava duas baforadas de fumo do seu cigarro sem filtro e o voltava a pousar, algures, por entre as cinzas.

O passo seguinte era ir buscar um ou dois sacos de serapilheira e uma machadinha afiada.

E lá íamos nós, ao encontro de pinheiros, para lhe retirar as cascas superficiais para dentro do saco. Leves como uma penas, regressávamos à oficina com os dois sacos de cascas. Ele ficava todo feliz.

De seguida, voltava-se para mim e perguntava:

“Olha lá, o que é que tu queres?”

“Olhe senhor Artur, eu queria que você, se fizesse o favor, me fizesse dois arcos?”

“Está bem, traz o ferro?”

O ferro, ou os ferros, tinham ficado escondidos do outro lado do muro.

“É só um momento, senhor Artur?”

Sobre a sua bigorna, com marteladas rápidas e certeiras, enquanto fumava um dos seus Kentucky, endireitava o ferro que depois moldava-o até atingir uma circunferência perfeita. Faltava dar o último passo, que era ir a uma espécie de livro, de onde tirava um finíssimo quadrado com o qual soldava as duas pontas. Nunca nenhuma se dessoldou.

“Agora ide à vossa vida!”

A partir daquele momento, dois dos meus amigos, ficavam servidos e felizes.

 

(José Venade não segue o actual acordo ortográfico em vigor).

 

* O autor não segue o acordo ortográfico de 1990

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