Compre já a nova edição do livro MINHO CONNECTION

O inferno das certidões de óbito

13

A dificuldade em conseguir que os médicos assistentes emitam as certidões dos óbitos que ocorrem em Paredes de Coura ao fim-de-semana verifica-se desde o encerramento dos serviços de urgência, colocando dilemas de ordem técnica e ética, não só aos profissionais directamente associados aos serviços de saúde de diversas estruturas (ULSAM, INEM, unidade de saúde pública), mas também aos agentes funerários e às forças de autoridade.

A solução tem passado, muitas vezes, pelo recurso a situações pouco éticas, havendo mesmo quem diga que “o inferno que é obter certidões de óbito ao fim-de-semana em Paredes de Coura tem levado algumas famílias a obterem-nas de forma pouco ética. A verificação da morte é um acto médico e cada profissional saberá de si. Mas compreendo o desespero das famílias e dos médicos que perante esse desespero, acabam por facilitar”, revelou à nossa reportagem um profissional que acompanha este processo.

O problema foi recentemente agravado com a reforma e/ou transferência dos médicos assistentes que melhor conheciam a população courense, tendo sido substituídos por clínicos da vizinha Espanha. A somar a tudo isso, os médicos espanhóis que são actualmente os médicos de família dos utentes do Centro de Saúde de Paredes de Coura não se tem disponibilizado para fazer as horas extraordinárias em que a unidade local de saúde está aberta ao fim-de-semana, sendo substituídos por médicos externos, que estão afectos a outros centros de saúde, os quais se tem habitualmente recusado a emitir certidões de óbito, alegando o «não conhecimento do historial clínico dos doentes». E é aqui que está o cerne da questão que tanto tem incomodado os familiares que têm o azar de assistir à morte de um ente querido ao fim-de-semana, verificando-se que as entidades competentes não têm feito supostamente o suficiente para mudar o estado de coisas.

 

PUB

Saúde Pública considera que pedidos de verificação deveriam ser “uma excepcionalidade”

Mas ilustremos o processo de um modo concreto. A GNR, accionada ao mesmo tempo que são alertados os meios de socorro urgente, em caso de falecimento e na eventualidade de não existir um médico que verifique o óbito (muito habitual porque a SIV que presta socorro em Paredes de Coura não é integrada por nenhum médico, ao contrário de outras SIV do distrito), tem a responsabilidade de contactar o procurador do Ministério Público enquanto aguarda à porta do domicílio onde se encontra a pessoa que, presumidamente, terá falecido. Enquanto isso, o procurador do MP, de acordo com as informações que recolhe acerca das circunstâncias do óbito, determinará as diligências subsequentes: envia o corpo para autópsia ou manda-o entregar à família para tratar dos procedimentos fúnebres. É aqui que a GNR recorre à unidade de saúde pública, que é então contactada para verificar o óbito. Aqui reside um problema adicional: a função de delegado de saúde pública concelhia foi extinta há 10 anos e a solicitação recai agora sobre a Unidade de Saúde Pública do Alto Minho, sediada em Viana do Castelo. Por nós contactado, Luís Delgado, o coordenador da referida unidade afirma que “as situações burocráticas de verificação de óbito é um dos nossos deveres profissionais e não nos escusamos a fazê-lo. Devo dizer que apesar do fim-de-semana em Paredes de Coura ser, para nós, um aborrecimento, estamos a cumprir e não temos até à data, registo de qualquer queixa ou reclamação em relação ao cumprimento da nossa função”. Luís Delgado foi claro na ideia de que principais incumbências dos delegados de saúde pública são outras e que apenas deveriam ser contactados esporadicamente para fazer a verificação de óbitos: “fazemos isso com sacrifício porque o paradigma da saúde pública hoje em dia é outro. Hoje somos uma equipa robusta, concebida e especializada para questões mais técnicas como são as relativas à emergência em saúde pública (ex: meningites, intoxicações, calamidades públicas, etc.). Acorrer a situações burocráticas como aquelas de que me fala deveria ser uma excepcionalidade, o que já acontece noutras zonas do distrito. Por exemplo em Viana, há meses que não somos chamados para a verificação de óbitos”. E o coordenador não tem dúvidas de que “por todo o acompanhamento que é feito ao utente ao longo dos anos, facilmente se percebe a razão pela qual a certificação do óbito é um dever do médico de família”

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

“Deve ser o médico assistente ou a unidade local de saúde (a USF)” a certificar

Tivemos a consultar as recomendações da ARS Norte e estas não deixam, de igual modo, qualquer margem para dúvidas, tendo a Administração Regional do Norte emitido o parecer nº 105/2011, em que diz que “deve ser o médico assistente ou, na eventualidade de haver elementos clínicos no processo que ajudem na decisão sobre a causa de morte, deve ser a unidade local de saúde (a USF) a chamar a si essa responsabilidade”. O referido parecer, que se debruça sobre o “dever de certificar a morte por parte do médico de família” e que foi redigido para responder a uma reclamação feita a propósito da alegada recusa de um médico de família em atender um pedido de verificação/certificação do óbito de um doente, menciona que “é dever do médico assistente verificar presencialmente o óbito de pessoa cuja responsabilidade lhe esteja cometida. A competência do médico assistente para verificar um óbito não é exclusiva nem obrigatória, sendo um dever condicionado às circunstâncias. É, igualmente, dever de zelo do médico assistente disponibilizar-se, se solicitado, para emitir certificado de óbito, verificado por outro colega e se este, por não conhecer o caso, não o emitiu. Quando o médico assistente não possa emitir o certificado, pode um outro médico que exerça funções na mesma unidade de saúde, substituir o médico ausente (…)”.

PUB

Aqui chegados, torna-se evidente constatar que as recomendações relativas ao dever de certificação da morte por parte do médico de família não estão a ser seguidas em Paredes de Coura. Como fazer para que tal aconteça? Será pertinente questionar se os médicos assistentes considerarão que são parcamente compensados para fazerem um ou outro turno ao fim-de-semana ou se, pura e simplesmente, se recusam a fazê-lo porque vêm de longe (da Galiza) e entendem que devem poder gozar esses dias com as famílias e descansar das habituais actividades profissionais, o que será lícito e deverá ser respeitado. No entanto e não servindo os outros casos para criticar a actuação dos médicos assistentes de Paredes de Coura, a nossa investigação apurou a existência de médicos de família no distrito que facultam o contacto pessoal aos seus utentes para prevenir e evitar a ocorrência de situações de extraordinária complexidade e melindre, como as que têm sido relatadas em Paredes de Coura aos fins-de-semana, cumprindo desse modo o dever de certificação do óbito que lhes assiste.

Médicos de família ausentes ao fim-de-semana e médicos presentes na USF recusam-se a certificar

Assim, constata-se que o facto dos médicos de família não estarem disponíveis ao fim-de-semana para emitir as certidões de óbito dos utentes que acompanham é só a parte inicial do problema, isto porque se verifica também que os médicos que prestam serviço na USF também não estão a cumprir integralmente com os deveres profissionais que estão plasmados nos códigos que regem a sua conduta, como é o caso do parecer nº 105/2011. Ou seja, assiste-se, habitualmente, que os médicos que prestam extraordinariamente serviço ao fim-de-semana no Centro de Saúde de Paredes de Coura se recusam a certificar os óbitos alegando a falta de elementos clínicos no processo que os ajudem a determinar a causa de morte. Tal situação indicia uma deficiente articulação entre os médicos assistentes e os médicos que os vem substituir ao fim-de-semana. Em virtude destas deficiências, Luís Delgado admite que “ao fim-de-semana, Paredes de Coura é um sacrifício para nós”.

PUB

Consequentemente, a certidão de óbito demora muito mais tempo que o habitual a ser emitida e, nesse período de tempo, ninguém tem permissão para mexer ou mover o cadáver de local e quem sofre são os familiares que querem velar o ente querido e agilizar as cerimónias fúnebres. E a situação poderá ser ainda mais demorada se os delegados de saúde pública se recusarem, também eles, a certificar o óbito: “na maioria dos casos, fazemos apenas a verificação do óbito, isto porque a certificação implica o conhecimento das causas da morte e não nos compete a nós determiná-lo porque não temos na nossa posse os dados clínicos que nos permitam aferi-lo. Pode-se, sempre, excepcionalmente, certificar o óbito mencionando causas desconhecidas, mas esse procedimento não é, dentro da nossa unidade o mais correcto visto que o nosso trabalho passa também por possibilitar que sejam conhecidas com rigor e não mascarar as doenças que vitimam a nossa população. Mas não nego que somos frequentemente pressionados para não só verificar, mas também certificar os óbitos. Claro que quando entendemos que devemos fazê-lo, mencionamos que as causas do óbito são desconhecidas”, salienta o coordenador da Unidade de Saúde Pública do Alto Minho.

 

“Inexistência de serviços de urgência dificulta este processo”

Mas há implicações para outros intervenientes no processo. “Ao socorrer um doente que se encontre já morto à hora da nossa chegada, ou seja, mesmo que demonstre já rigidez cadavérica, as normas éticas e profissionais que regulam a nossa função de assistência, obrigam-nos a proceder no local a todas as manobras de reanimação, caso contrário podemos ser acusados e condenados por omissão de ajuda”, esclarece um profissional de emergência médica. A mesma fonte refere-nos que “através da observação do doente conseguimos avaliar se o mesmo se encontra ou não em paragem cardio-respiratória, no entanto, não temos habilitação legal para verificar o óbito. Nesse caso e, na eventualidade de não haver um médico que possa verificar o óbito, somos obrigados a transportar o doente para a unidade hospitalar de referência mais próxima para fazer essa verificação (Ponte de Lima ou Viana do Castelo). Isso implica que, caso o doente venha a falecer, a família tenha depois que enviar a funerária à unidade hospitalar para obter a verificação/certidão e levantar o corpo. Se por qualquer motivo não pudermos retirar o doente do local em que o assistimos, temos que chamar as forças de autoridade que ocuparão o nosso lugar até à chegada do médico que venha verificar/certificar o óbito”. O nosso interlocutor reconhece ainda que “a inexistência de serviços de urgência em alguns concelhos periféricos do distrito dificulta este processo, algo que poderia ser facilmente resolvido com a presença de um médico (de família) à chamada ao fim-de-semana, um recurso que seria extremamente útil para evitar algumas situações de conflito latente com que nos temos deparado ultimamente. Imagine que chegamos a um domicílio e a família se recusa a que iniciemos as manobras de reanimação porque se trata do caso de um doente terminal e já não há qualquer viabilidade para melhor a qualidade de vida. Nesse caso, teremos que contactar o CODU (Centro de Orientação de Doentes Urgentes) e será o médico regulador deste serviço que orientará a nossa acção e nos dirá se estaremos ou não dispensados de iniciar as manobras de reanimação. Posso dizer que em muitos casos temos que proceder às mesmas perante a angústia dos familiares que sabem, como nós sabemos, que aquele procedimento é apenas uma formalidade. A única forma do doente não ser sujeito a essas manobras é deixar isso registado no testamento vital, através do direito à não reanimação (DNR)”, concluiu o profissional de emergência médica com quem falámos.

PUB

 

Justificam-se mais VMER`s? Porque não há médico na SIV que presta assistência em P. Coura?

Chegados aqui, outra situação merece ser questionada. Atendendo a que a única VMER que acorre a situações de emergência no distrito não chega para as encomendas, não se justificaria a existência de mais uma ou duas VMER`s? Ou então, porque não dotar a SIV de Paredes de Coura com médico (o que será uma responsabilidade do CODU)? Estas questões parecem-nos particularmente pertinentes ao verificar-se que uma parte substancial dos óbitos não tem podido ser verificados no local devido à inexistência de médicos nos veículos de socorro enviados a Paredes de Coura, situação que faz, desde logo, aumentar as burocracias relativas à verificação/certificação do óbito naquele concelho.

 

“Não está a haver respeito pelo sofrimento das famílias”

Os agentes funerários também se queixam. Um agente que contactamos, referiu-nos que “quando somos chamados para tratar das formalidades, começando pela obtenção da certidão de óbito, tal revela-se, por vezes, muito difícil, principalmente ao fim de semana porque há poucos médicos e os poucos que há já não facilitam, ao contrário de antigamente, em que era mais fácil obter-se a certidão. Temos então que aguardar que a GNR ligue para o delegado de saúde pública que se encontre de serviço e ficámos dependentes da sua disponibilidade para se deslocar ao local. Dependendo do que tiverem para fazer, tanto podem demorar meia dúzia de horas como quase 24 horas, algo que ainda aconteceu recentemente num caso durante o mês de Agosto. Isso é desagradável para todos os envolvidos, principalmente para os familiares”.

Obtivemos também a versão de um familiar que passou recentemente por uma situação em que a burocracia para a obtenção da verificação/certificação de óbito parecia não acabar. “Tratou-se de um acontecimento que não gostaria de voltar a viver. Por sorte que tínhamos um médico amigo a quem pudemos recorrer, caso contrário teríamos que esperar de sábado até segunda pela certidão de óbito. Tem que haver forma de fazer as coisas de outro modo. E também aqui na freguesia, houve recentemente o caso de uma pessoa que faleceu, já estava na capela a ser velada com o funeral marcado para dali a poucas horas e só nessa altura é que vieram certificar o óbito. Acho que não está a haver respeito pelo sofrimento das famílias”, solicitou o nosso interlocutor, que não quis ser identificado.

 

Câmara desconhecia a situação

Ouvimos também a autarquia, que pelas palavras do seu presidente Vítor Paulo Pereira informou que “a situação não tinha sido reportada à Câmara Municipal. No entanto, o assunto merece todo o cuidado e atenção e, por essa razão, iremos pedir esclarecimentos junto da ULSAM no sentido de garantir aos courenses o melhor acompanhamento possível nestas situações”.

 

 

PUB
  Partilhar este artigo
Nuvem do Minho
geral@minhodigital.pt
  Partilhar este artigo
PUB
📌 Mais do Coura
PUB

Junte-se a nós todas as semanas