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O que continuam a dizer os outros sobre o Prédio Coutinho (actualizado)

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Crónicas sobre o drama dos ‘resistentes’ do Prédio Coutinho.

RTP 1 (Sexta às 9, de Sandra Felgueiras):19/Julho/2019:

https://www.rtp.pt/noticias/pais/sexta-as-9-resultados-liquidos-da-vianapolis-sempre-nulos_v1161513

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GOSTA DESTE CONTEÚDO?

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A LIÇÃO E A DEMOLIÇÃO DO PRÉDIO COUTINHO

 

 Alberto Gonçalves

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(Observador)

 

O Estado serve para desumanizar os cidadãos. E os cidadãos deveriam servir para abominar o exercício e opor-se-lhe. É evidente que o Estado, que detém a força, acaba por ganhar sempre, ou quase sempre.

 

José Manuel Pedreirinho, um sujeito que é presidente da Ordem dos Arquitectos, considera o prédio Coutinho uma “aberração completa sem qualidade arquitetónica”. Após quinze minutos de buscas na internet, não consegui encontrar nenhuma obra do sr. Pedreirinho. É pena, porque acho que me divertiria imenso. Felizmente, encontram-se por esse Portugal afora inúmeras obras desenhadas e assinadas por inúmeros arquitectos inscritos na agremiação a que o sr. Pedreirinho preside. Para quem tiver estômago, é uma galhofa. Se o prédio Coutinho é feio – e Deus Nosso Senhor sabe que é horrendo –, não é mais feio do que largos milhares de estafermos que se plantaram de Norte a Sul nas últimas cinco décadas. Décadas em que, por obra (lá está) e graça (lá está também) de grandes, médios, pequenos e microscópicos arquitectos, a estética de uma nação pobre e mansa se transformou num compêndio insultuoso de porcarias. Por algum motivo, apenas o prédio Coutinho (e uns barracos de praia) foi indiciado para eliminação.

 

É verdade que se todas as construções repugnantes fossem demolidas, idealmente em cima dos vultos que as conceberam, metade da população daria por si a dormir debaixo de pontes. E isto enquanto as próprias pontes, cuja maioria ofende a vista, não fossem igualmente abaixo. Por estas e por outras, do bom senso às limitações financeiras, é apesar de tudo recomendável a manutenção das misérias visuais que temos. Donde uma questão: porque é que não se aplica o mesmo princípio ao prédio Coutinho, aparentemente o único bicho a abater num rebanho contaminado com gravidade?

 

Uma pergunta, nenhuma resposta, diversas suspeitas, meia dúzia de factos. Há uma autarquia, naturalmente socialista, que quer livrar-se do edifício em causa para construir um mercado municipal, por acaso a exacta estrutura que se arrasou para erguer, vai para meio século, o exacto edifício. Há um presidente da autarquia que, com a impunidade dos sobas e o descaramento dos impunes, comete os desvarios que lhe apetece para esvaziar aquilo. Há uma metástase da autarquia, chamada Vianapólis, que finge emprestar competência técnica à decisão e é chefiada pelo irmão de um secretário de Estado, ambos decerto habilitadíssimos. Há os contribuintes que patrocinam os 35 milhões necessários à existência da Vianapólis e às expropriações. Há um governo que costuma pugnar pela legalidade e produziu considerações interessantes acerca do assunto, incluindo a de que os “poderes públicos”, coitadinhos, saem “abusados” do processo. Há uma lei que condena os senhorios que incomodem inquilinos no sentido do despejo. Há a indiferença dos “poderes públicos” à lei. E há, claro, os moradores restantes do prédio Coutinho, os quais, com inimaginável insolência, recusam abdicar do que é deles e são por isso processados, perseguidos, cercados, ameaçados e privados de água, comida e saúde. O que não há é quem se enfureça a sério com tamanha demonstração de prepotência.

 

Em lugares civilizados – espero eu, que os tempos não favorecem o optimismo –, os últimos dias teriam assistido a um desfile de multidões furiosas à porta dos acossados, multidões de vizinhos, conterrâneos ou fortuitos, solidários com a resistência de nove pessoas a uma máquina sinistra e brutal. Por cá, não houve vivalma. Por cá, marcha-se e grita-se contra e a favor do que calha, desde que calhe de serem assuntos ridículos (a “identidade”), inevitáveis (a “troika”), remotos (o “Médio Oriente”), confusos (as “alterações climáticas”) e, em suma, quaisquer matérias aprovadas e certificadas pelos comités tácitos que aprovam e certificam os berreiros colectivos. Pelos nove do prédio Coutinho, velhos comuns que não integram tribos particulares, nem um. Nem uma criatura se aproximou daquela gente, a provar-lhe que não está sozinha.

 

A bem dizer, uma criatura tentou aproximar-se. Era uma actriz dramática local, Elisabete Nãoseiquê, regularmente financiada pela câmara e que sonhou com o primeiro “cordão humano” do mundo que em vez de proteger as vítimas protegeria os opressores. A aceitação, pelo tribunal, de uma providência cautelar favorável aos moradores travou os ímpetos da dona Elisabete, que passavam por escorraçar os resistentes. Porém, a ideia ficou. Aliás, a ideia já reside aqui há muito tempo – e não arrisca ser despejada: entre os fracos e os fortes, o português médio não hesita na preferência. De Viana a Faro, a esperança de um país livre é a primeira a morrer.

 

Do episódio sobra uma lição, que ninguém aprenderá. Os que enchem a boca com a fundamental serventia do Estado teriam no prédio Coutinho um bom exemplo para acompanhar a argumentação. O Estado serve para desumanizar os cidadãos. E os cidadãos deveriam servir para abominar o exercício e, na medida do possível, opor-se-lhe. É evidente que o Estado, que detém a força, acaba por ganhar sempre, ou quase sempre. Mas há perder com dignidade. E há perder assim.

 

DEMOLIR O PRÉDIO COUTINHO É UM PENSAMENTO «PEQUENINO E PAROLO»

André Manuel Correia (Expresso)

 

O arquiteto Fernando Maia Pinto, mentor de uma candidatura para classificar o Prédio Coutinho como imóvel de interesse público, frisa que o “palito ao alto”, erguido em Viana do Castelo nos anos 1970, deve ser preservado por ser representativo de uma época.

Um “mamarracho” a abater por razões estéticas para alguns, como Defensor Moura, antigo presidente da Câmara Municipal de Viana do Castelo que, durante algum tempo, até lá morou num apartamento arrendado. A luta de uma vida para outros, como os últimos nove resistentes, firmes na recusa de entregar as chaves à sociedade VianaPolis — mesmo após uma semana de cerco em que continuaram em luta, numa prisão caseira, privados de eletricidade, gás, água, alimentos e medicamentos.

 

A polémica instaurada pela desconstrução do Prédio Coutinho, expropriado em 2000, tem polarizado opiniões nos últimos dias, mas não é uma preocupação recente. Exemplo disso é a candidatura, formalizada junto da Direção-Geral do Património, em 2018, para que o edifício fosse classificado como imóvel de interesse público.

 

O mentor da iniciativa foi o arquiteto Fernando Maia Pinto que, ao Expresso, explica as razões que sustentaram o pedido subscrito por moradores e alguns ilustres como Manuel Monteiro e Ribeiro e Castro, antigos presidentes do CDS-PP. A trave mestra é, desde logo, o lado humano.

 

“É um crime demolir um prédio onde vivem pessoas felizes. Porque é que se deve despejar pessoas que estão felizes nas suas casas? Até porque, de acordo com as teorias liberais e capitalistas, a propriedade é sagrada”, advoga o autor da candidatura. “Choca-me ver o Estado — através dos seus organismos, neste caso a VianaPolis — promover mais destruição, principalmente num país que não é farto de recursos”, acrescenta o signatário de 72 anos, para quem se “deve pensar duas vezes no dinheiro gasto a demolir o edifício, a indemnizar e a realojar os moradores”.

 

Relativamente à questão estética, evocada para a demolição, o arquiteto não se põe com fachadas: “Eu, desde os anos 1970, que acho o edifício um mamarracho. Quem, naquela altura, chegava a Viana levava logo com o Coutinho no focinho. Era dissonante e chocante”. Agora, defende, já não é assim.

 

A ideia é alicerçada no facto de o acesso à cidade já não ser efetuado através da ponte velha [Ponte Eiffel] e, depois, porque “a volumetria em Viana do Castelo tem subido e criado um ‘skyline’ muito diferente daquela altura”, o que faz com que o imóvel de 13 andares se dilua na paisagem.

 

Na opinião de Maia Pinto, “podiam ter sido tomadas medidas para minorar o impacto urbanístico”, como, por exemplo, “cortar três, quatro, cinco ou seis andares”, além de “fazer um ‘lifting’ para deixar a fachada mais integradora, chamando bons designers, que dessem uma imagem mais moderna ao edifício”.

 

Beleza à parte, o arquiteto frisa que o Prédio Coutinho é “belissimamente bem construído”, “uma obra de engenharia fantástica, do melhor que se fazia na altura”, tendo por isso um valor pedagógico.

 

“Corresponde a um outro tipo de urbanismo, fortemente especulativo, associado a uma época em que todas as cidades do mundo começam a fazer palitos ao alto. Não se dava importância aos valores estéticos e iam crescendo como cogumelos”, contextualiza o autor da candidatura rejeitada. Demolir o Coutinho é, conclui, “um pensamento pequenino e parolo”.

O AZAR DOS HABITANTES DO PRÉDIO COUTINHO 

Helena Matos

Jornalista da Rádio Observador

 

Todos sabem que não existe interesse público que justifique a demolição. Mas dá-se como adquirido que o Estado vai ganhar. Depois dirão: as vítimas tinham razão. É o síndroma azar dos Távoras.

 

Onde páram os bispos indignados? Os activistas do sofrimento? Os jornalistas ofegantes com a revolta popular? Os fóruns radiofónicos ululantes? E Marcelo, sim Marcelo, que não falha arraiais nem “futebóis” e sai para a rua mal sabe que um português espirra, desta vez não faz nem um telefonema?

 

Pois é, os habitantes do prédio Coutinho não geraram indignação, nem solidariedade, nem comentários nas redes sociais. Ou tendo gerado tudo isso não estão no lado certo das vítimas. Note-se que não há qualquer interesse público que justifique a demolição. Apenas uma questão de gosto. De birra pessoal.

 

Se os habitantes do prédio Coutinho fossem inquilinos com rendas atrasadas há vários anos, claro que Catarina Martins lá estaria aos pulinhos, gritando contra a especulação dos senhorios e exigindo até que fossem feitas obras nos andares. Não faltariam também as vozes do costume explicando a falta de uma lei de Bases da Habitação e os organizadores dos cordões humanos não teriam parança.

 

Se os habitantes do prédio Coutinho fossem okupas já haveria gente amarrada ao edifício e artistas vários fazendo performances. A sua vida seria designada como resistência e certamente que inspiraria vários documentários.

 

Se os habitantes do prédio Coutinho fossem uma matilha de cães certamente que o PAN lutaria pelo seu bem estar.

 

Se os habitantes do prédio Coutinho conseguissem ser conotados com uma qualquer minoria, daquelas a quem todos os dias nos dizem que temos de pedir desculpa, já lá estariam a Amnistia Internacional, enviados nas Nações Unidas e muitos mas mesmo muitos fotógrafos que obviamente fariam em Viana a fotografia do ano.

 

Da forma como decorre a expulsão dos proprietários do edifício Coutinho há duas lições a tirar e nenhuma delas é tranquilizadora: a primeira é que o autoritarismo que tem caracterizado o poder socialista em Viana só é possível porque a indignação, as causas e a denúncia das injustiças foram deixadas por conta da esquerda. A direita acreditou que bastava colocar contas em ordem e promover o crescimento para que se reconhecesse o seu papel e, obviamente, se lhe perdoasse o facto de não ser socialista. Agora espanta-se com a apatia da sociedade portuguesa. Mas quem ficou apático primeiro? Mais, quem senão a direita com o seu complexo de inferioridade, contribuiu decisivamente para essa anomia?

 

A segunda lição é também um aviso: ninguém que pense vir a ser verdadeiramente escrutinado pelos seus actos exerce o poder deste modo.

 

Para contrariar este estado de coisas, que é verdadeiramente o Estado de Portugal, e lutar contra o síndroma “azar dos Távoras” que se abate sobre quem enfrenta o jacobinismo venho muito pragmaticamente propor que o terreno do prédio Coutinho deixe de ser português e passe a integrar o Rio Grande, mais especificamente na zona em que este rio serve de fronteira entre o EUA e o México. A quem duvidar da razoabilidade da minha proposta recordo que esta alienação de uns metros do território português parece-me bem menos difícil de justificar que o processo que levou o estado português a demolir um mercado, vender o respectivo terreno, licenciar um prédio e agora querer demolir esse mesmo prédio para construir aí outro mercado. (A propósito quanto custou e ainda vai custar ao contribuinte português esta exibição do “quero, posso e mando”?)

 

A grande vantagem da passagem administrativa do terreno do edifício Coutinho do município de Viana para o território-leito do Rio Grande é que o culpado pela expropriação e pelos seus contornos injustificáveis, pelas técnicas violentas para desalojar os últimos residentes (começar a deitar paredes abaixo nos andares contíguos àqueles onde vivem os últimos habitantes do edifício Coutinho o que é senão uma enorme violência?), pela rede familiar dos diversos protagonistas, passa a ser automaticamente Trump. Assim, com o Trump à mistura, tudo se torna claro, clarinho: o que está a acontecer no edifício Coutinho é a imposição da lei do mais forte.

 

Obviamente que com esta deslocalização para o Rio Grande, os habitantes do prédio Coutinho deixam de ser os “habitantes do prédio Coutinho” e passam logo a ser tratados pelo nome próprio, como acontece aos protagonistas que estão do lado certo das notícias.

 

Dir-me-ão que os “habitantes do prédio Coutinho” ao contrário daqueles que tentam atravessar o Rio Grande para entrar nos EUA não querem ir para qualquer outro lugar, antes muito conservadoramente pretendem ficar em casa. É verdade mas esse, tenho a certeza, é um detalhe em que ninguém vai reparar. Afinal também ninguém repara na irónica contradição subjacente a termos em simultâneo (às vezes até nas mesmas notícias) críticas violentas a Trump pela forma como está a governar os EUA e críticas ainda mais violentas ao mesmo Trump por não deixar entrar nos EUA todos os milhões de sul-americanos que sonham viver nesse país, que os activistas-jornalistas na linha anterior descreveram à beira do desastre. Ou por se chamar muro de Trump a um muro que começou a ser construído há vários anos e com o aval de administrações democratas e republicanas. Ou por durante a administração Obama raramente se referir a política de deportação dos ilegais…

 

Esta minha proposta tem ainda a extraordinária mais-valia de poupar as viagens ao “Miguel” e aos outros “miguéis” que por aí pululam: os migrantes, imigrantes, refugiados… em vez de tentarem atravessar o Rio Grande apanhavam simplesmente o avião para Portugal, uma vez aqui chegados dirigiam-se para Viana e aí instalavam-se no edifício Coutinho. Depois era só convencerem o Trump que estavam no lado americano do Edifício Coutinho-Rio Grande. Ou os mexicanos doutra coisa qualquer.

 

Tenho a certeza que em menos de um mês todos nós perceberíamos que aqueles desgraçados que aparecem nas imagens que nos estão a chegar do Rio Grande, estão a ser atraídos a uma armadilha. E não, não é pelo Trump.

 

EDITORIAL

A FALHA QUE MAIS IMPORTA NA “NOVELA COUTINHO”

 

Sendo um drama de pessoas concretas, a novela do prédio é também uma história das fragilidades da democracia e do estado de direito. Convém não o esquecer.

 

Há 20 anos que os vianenses acompanham, episódio a episódio, a interminável novela do Prédio Coutinho e tudo indica que não vão conhecer o fim em breve. Na fealdade da sua silhueta, na indecisão dos tribunais, na obstinação de uns poucos ou na paixão que muitos devotam aos resistentes, o mamarracho pode muito bem ser o símbolo deste país que ora ata, ora desata, sem nunca decidir uma coisa ou outra.

 

Enquanto a novela durar, enquanto houver nove famílias com fôlego suficiente para resistir ao que uma certa direita designa por “opressão” do Estado, o prédio servirá como entretenimento perfeito. Pessoas isoladas, alimentadas com balde e cordas, um tribunal que decidiu baralhar e dar de novo, uns bons, outros vilões, são ingredientes que funcionam sempre. Ao entretermo-nos assim, porém, esquecemos o essencial.

Há 20 anos que os vianenses acompanham, episódio a episódio, a interminável novela do Prédio Coutinho e tudo indica que não vão conhecer o fim em breve. Na fealdade da sua silhueta, na indecisão dos tribunais, na obstinação de uns poucos ou na paixão que muitos devotam aos resistentes, o mamarracho pode muito bem ser o símbolo deste país que ora ata, ora desata, sem nunca decidir uma coisa ou outra.

 

Enquanto a novela durar, enquanto houver nove famílias com fôlego suficiente para resistir ao que uma certa direita designa por “opressão” do Estado, o prédio servirá como entretenimento perfeito. Pessoas isoladas, alimentadas com balde e cordas, um tribunal que decidiu baralhar e dar de novo, uns bons, outros vilões, são ingredientes que funcionam sempre. Ao entretermo-nos assim, porém, esquecemos o essencial.

 

A luta dos resistentes é comovente e há na sua causa argumentos a considerar – do ponto de vista formal eles compraram legalmente uma casa e lá viveram legalmente. Mas, num estado de direito, as decisões dos órgãos democráticos, o Governo ou, no caso, a autarquia de Viana, prevalecem sobre os interesses particulares – desde que sustentadas na lei.

 

Pouco interessa se foi a sua horrenda figura, que, concordemos, estraga o perfil de uma das mais belas cidades do país, a determinar a história; pouco conta se foi a imposição de critérios estéticos de uns sobre outros a impor a demolição. O que é importante notar é que foi um governo e uma autarquia eleitos pela maioria que decidiram abater o edifício em nome de uma certa interpretação do interesse público.

 

Podemos contestar a decisão, mas querer subvertê-la só por força do recurso aos tribunais. Ora, salvo a aceitação esporádica de providências cautelares, os tribunais sempre sustentaram essa decisão.

 

Fica bem manifestar solidariedade aos resistentes – e os jornais, como o PÚBLICO, têm o dever de respeitar o seu direito à resistência, de exigir compensações justas ou de recusar qualquer gesto autoritário que os expulse com violência. Mas, se temos de considerar o seu protesto, não podemos esquecer os 290 habitantes no prédio que, por força da lei, mudaram de vida. Ou os interesses da VianaPolis que espera há anos pelo convencimento dos resistentes.

 

Podemos introduzir na conversa os habituais “e então os outros mamarrachos?”, “então e o bairro da Jamaica?” que nem isso serve para superar a questão fundamental: uma democracia é um jogo formal onde, em última instância, as escolhas de fazem em eleições e os conflitos se dirimem na Justiça.

ASSÉDIO NO PRÉDIO COUTINHO

Com que fundamento se cortaram serviços públicos e se impediram pessoas, algumas idosas, de saírem das suas casas e de terem acesso normal a alimentos e aos seus advogados?

 

O Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga aceitou uma providência cautelar dos moradores que travou a ação de despejo do Prédio Coutinho, em Viana do Castelo, e levou a que fossem repostos luz, gás e água. Contra as declarações taxativas da câmara e do Governo, afinal, ainda alguma razão assistirá aos últimos moradores do prédio.

 

A VianaPolis já anunciou que vai pedir a revogação do despacho, contestando esta nova decisão do tribunal que ainda há meses lhe deu razão, mas os factos dos últimos dias são estes. Com que fundamento se cortaram serviços públicos e se impediram pessoas, algumas idosas, de saírem das suas casas e de terem acesso normal a alimentos e aos seus advogados?

 

O advogado e professor universitário Luís Menezes Leitão lembrou ontem, num artigo publicado no i, que, ainda em fevereiro, o Parlamento aprovou a lei 12/2019, que proíbe e pune o assédio no arrendamento, depois de virem a público casos de pressões para forçar moradores a abandonar em zonas interessantes para o mercado imobiliário. Cortes de luz, barulho, tudo o que foi denunciado em Viana.

 

Não estando em causa as razões do Estado para querer resolver a expropriação do edifício, esta forma de atuação é legítima? A deputada Helena Roseta admitiu que o processo foi mal conduzido e que a futura Lei de Bases da Habitação, em discussão no Parlamento, vai dificultar este tipo de procedimentos, determinando que o despejo administrativo, quando é decidido por uma Câmara ou uma entidade pública, não possa ser feito sem dar uma alternativa condigna de alojamento às pessoas, a menos que tenha sido uma ocupação ilegal.

 

“As entidades públicas não podem promover o despejo forçado ou a demolição de habitações precárias de indivíduos ou agregados familiares vulneráveis sem garantir previamente soluções alternativas de alojamento”, lê-se na proposta de lei do PS, que refere também que cabe aos municípios “combater a segregação espacial e social e todas as formas de discriminação no acesso à habitação, nomeadamente o assédio imobiliário, entendido como toda a ação ou omissão, praticada com abuso de direito, que vise perturbar o uso legítimo da habitação pelos que nela residem ou forçá-los a abandoná-la sem fundamento legal”. Um ponto que este recente caso, no mínimo, poderia reabrir.

COMENTÁRIO DE JOÃO PEREIRA COUTINHO (CMtv)

https://www.cm-tv.pt/opiniao/detalhe/joao-pereira-coutinho-este-caso-do-predio-coutinho-e-um-retrato-tristissimo-do-pais

OPINIÃO DE JOSÉ MANUEL FERNANDES (OBSERVADOR)

O FUNCHAL TAMBÉM TEM UM “PRÉDIO COUTINHO”

Rui Campos Matos

Jornalista 

A sua esbelta torre de 11 pisos implanta-se, com invulgar destreza, num quarteirão em pendente,

 

Tempos houve em que, como aconteceu em Viana do Castelo, toda a capital de província sonhava ter o seu “prédio Coutinho”: um prédio alto (quanto mais alto melhor) símbolo de progresso e modernidade. Ecos do chamado Estilo Internacional que, no pós guerra, assinalava com as suas altas torres a pujança das metrópoles americanas, muitas delas desenhadas por proeminentes arquitectos: Le Corbusier (a sede das Nações Unidas em Nova Iorque); Lúcio Costa e Niemeyer, entre outros (o Ministério da Educação do Rio de Janeiro); Mies van der Rohe (as torres de Lake Shore Drive, em Chicago). Com a mesma inspiração, cidades como a Covilhã, Viseu, Ponta Delgada, Póvoa de Varzim e o próprio Funchal, viram nascer, nas já longínquas décadas de 60 e 70 do século passado, os seus “prédios Coutinhos”, todos eles assinados por arquitectos.

 

Cada cidade teve o “coutinho” que lhe coube em sorte. Na Covilhã, a Torre de Santo António, com 18 pisos, saiu da pena do arquitecto Fernando Pinto de Sousa, pai do engenheiro José Sócrates, que depois de alindar a Beira Baixa com as suas moradias, veio anunciar, já na qualidade de 1º ministro, que o “coutinho” de Viana era um “erro urbanístico”. Anos mais tarde, como se sabe, o prolífico engenheiro daria entrada no Estabelecimento Prisonal de Évora, desenhado por Luís Amoroso Lopes, autor do “coutinho” de Viseu. Ironias do destino. Em 1973, Coutinho Carvalho assinava o ante-projecto do “coutinho” de Ponta Delgada, com 21 pisos. Nesse mesmo ano, a Póvoa de Varzim, terra que me viu nascer, veria nascer outro prodígio: o Edifício Nova-Póvoa, uma torre com 30 pisos, a mais alta do país, desenhada por Carlos Garcia.

 

Ao Funchal, pioneiro nesta saga, saiu-lhe na rifa o mais qualificado de todos os “coutinhos”, concebido na primeira metade dos anos 60 por Chorão Ramalho. A sua esbelta torre de 11 pisos implanta-se, com invulgar destreza, num quarteirão em pendente, serenamente rematado pelo edifício sede da Segurança Social. Até hoje, não passou pela cabeça de ninguém querer deitá-la abaixo, como aconteceu em Viana do Castelo. Se me perguntassem, todavia, se semelhante torre seria hoje autorizada no centro do Funchal, a resposta, obviamente, seria não. É compreensível: vivemos noutro tempo, com valores muito diferentes dos que tinham os homens que, há meio século, a construíram.

 

Não julguemos, pois, com os olhos de hoje, os sonhos e os pesadelos destes homens. Sobretudo não os insultemos, como fez o Sr. Presidente da Ordem dos Arquitectos ao apodar o “prédio Coutinho” de Viana do Castelo, de “aberração completa sem qualidade arquitetónica”, esquecendo, talvez, que o seu autor, o arquitecto Eduardo Coimbra de Brito, pertenceu ao Concelho Directivo Nacional da Associação dos Arquitectos e que, do seu currículo, para além do “prédio Coutinho”, constam obras de inquestionável qualidade, como o restauro do Forte de São Francisco de Chaves (com Pedro Jalles Ferreira) e da Pousada de São Bento da Caniçada (com Januário Godinho). Pensemos, isso sim, no restauro do “prédio Coutinho”, indiscutível testemunho de uma época em que progresso e modernidade significavam construir em altura.

O PRÉDIO COUTINHO ENTRE ESPARTA E ATENAS

 

Mestre em Ordenamento do Território e Planeamento Ambiental

Pode ser encontrado no município de Cascais, no sumptuoso edifício Estoril-Sol Residence, uma aberração estética e paisagística que, com a sua volumetria dissonante e intrusiva, devora a Marginal e desfigura a beleza do Estoril.

 

Na sua obra História da Guerra do Peloponeso, o historiador Tucídides (séc. v a.C.) relata o conflito que, na Antiguidade Clássica, opôs as potências de Esparta e Atenas. Num dos episódios mais famosos, o autor relata a postura negocial que Atenas pretendia impor aos habitantes da neutral ilha de Melos: ou abandonavam a sua postura de neutralidade e se juntavam a Atenas para lutar contra Esparta, ou seriam aniquilados.

 

No diálogo que se segue, os mélios tentam justificar como imoral e injusta a postura dos atenienses, sugerindo que a guerra é desnecessária quando os dois povos podem viver em paz e amizade. Para os gregos, a via pacífica é insustentável: “A vossa hostilidade não nos fere tanto quanto a vossa amizade, porquanto esta será uma prova da nossa fraqueza frente aos nossos súbditos, enquanto o ódio é a prova do nosso poder”, pelo que “os fortes fazem porque podem e os fracos sofrem o que devem”.

 

E assim aconteceu: os habitantes de Melos não se submeteram e foram destruídos. Tal como os mélios, também alguns habitantes do Prédio Coutinho não parecem querer submeter-se à prepotência de um poder superior que facilmente os aniquilará pela exaustão. Sem o apoio de Esparta e enfrentando a ira de Atenas, também estes se encontram desamparados entre dois mundos: por um lado, o edifício que habitam não possui qualquer interesse estético ou histórico que permita arregimentar o apoio de associações de património ou ambiente que possam vir em sua defesa; por outro lado, também não possui as credenciais de pomposidade que permitem a edifícios esteticamente aberrantes sobreviver: serem projetados por arquitetos famosos ou terem como construtores e moradores pessoas ricas e influentes.

 

Um caso óbvio que tipifica este último exemplo pode ser encontrado no município de Cascais, no sumptuoso edifício Estoril-Sol Residence, uma aberração estética e paisagística que, com a sua volumetria dissonante e intrusiva, devora a Marginal e desfigura a beleza do Estoril; este exemplo é, em certo sentido, ainda mais grave porque foi licenciado mais recentemente, num contexto de (supostamente) maior maturidade no planeamento urbanístico. Assim, se a estética fosse o único critério para a demolição de edifícios e para a expulsão dos seus residentes, milhares de edifícios Coutinho teriam de implodir.

 

O que impede essa política generalizada de implosões? Nada que tenha a ver com estética ou justiça, mas sim tudo aquilo que está presente no diálogo de Melos: interesses e poder. Alguns argumentarão que o Prédio Coutinho é um crime urbanístico e, ainda outros, um bem imóvel de interesse público (como tentou defender um movimento cívico que submeteu à Direção-Geral do Património Cultural uma petição nesse sentido – a qual foi rejeitada). É claro que o prédio é um crime urbanístico e nenhum interesse público deve ser concedido a um edifício só para que se evite a sua demolição ou o despejo dos seus ocupantes. No entanto, o respeito pelas regras da estética e funcionalidade urbanística não implica o desrespeito do direito dos cidadãos à habitação condigna, promovendo a sua humilhação e atentando contra a sua dignidade.

 

A hipocrisia bipolar de um urbanismo coercivo com os mais fracos e permissivo com os mais fortes é uma prática ética e moralmente corrosiva que ameaça generalizar-se se não for travada. Como advertência para todos aqueles que pensam poder perpetuar essa prática, assumindo que a subjugação dos mais fracos pode prosseguir impunemente, fica uma lição da História: Atenas ganhou a batalha em Melos, mas perdeu a Guerra do Peloponeso.

O CASO DO PRÉDIO COUTINHO

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Mesmo que o contrato já tenha terminado e o inquilino não tenha qualquer direito a permanecer no imóvel, o despejo tem de ser realizado pelos meios legais, não sendo aceitável num Estado de direito o recurso a meios de pressão ilegítimos para obrigar à saída dos habitantes de um prédio.

 

Começo por esclarecer que sou contra a construção de mamarrachos e que bem me aflige estar a ver as tradicionais avenidas das nossas cidades serem totalmente descaracterizadas pela aprovação da construção de edifícios absurdos por autarcas, cuja função deveria ser antes a protecção do património tradicional. No entanto, estamos num Estado de direito e, quando é licenciado um edifício e se permite a sua comercialização aos cidadãos, que nele investem as suas poupanças com o fim de lá residirem toda a sua vida e transmitirem a sua propriedade aos seus herdeiros, constitui uma verdadeira violência que o Estado queira voltar atrás na sua decisão e pôr em causa esse projecto de vida das pessoas que nele confiaram.

 

Efectivamente, a Constituição, no seu art.o 62.o, garante a todos o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, esclarecendo que a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem fazer-se nos termos legais e mediante justa indemnização. E garante também, no seu art.o 34.o, a inviolabilidade do domicílio, estabelecendo que a entrada no mesmo só pode ser ordenada por autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei. Face a esta regra constitucional, mesmo no caso de arrendamento e empréstimo temporário de habitações, os proprietários não podem recuperar as suas casas a não ser recorrendo aos meios legais.

 

Precisamente em virtude dos fenómenos de bullying imobiliário ocorridos nos últimos tempos, o Parlamento aprovou a lei 12/2019, de 12 de Fevereiro, que pune o assédio no arrendamento, considerando como tal qualquer comportamento do senhorio ou de terceiro interessado na comercialização do imóvel que sujeite os seus habitantes a um ambiente intimidativo, hostil, degradante, perigoso, humilhante, desestabilizador ou ofensivo, ou impeça ou prejudique gravemente o acesso e a fruição do imóvel. Entre esses comportamentos incluem-se expressamente a prática de actos que possam causar prejuízo à saúde das pessoas que residam no locado ou que impeçam as ligações às redes de água, electricidade, gás ou esgotos. Mesmo que o contrato já tenha terminado e o inquilino não tenha qualquer direito a permanecer no imóvel, o despejo tem de ser realizado pelos meios legais, não sendo aceitável num Estado de direito o recurso a meios de pressão ilegítimos para obrigar à saída dos habitantes de um prédio.

 

Mas se o Estado exige este comportamento aos proprietários que arrendaram apenas temporariamente um imóvel e, portanto, têm o direito de o recuperar findo o contrato, parece que se acha, pelo contrário, completamente livre para adoptar comportamentos semelhantes relativamente a um imóvel que expropriou, seja porque achava o imóvel feio, seja porque entendeu construir um mercado lá. É assim que assistimos com estupefacção a notícias de que foi ordenado o corte de electricidade e de água, e que foi iniciada a demolição do prédio ainda com habitantes lá dentro. E é especialmente escandaloso que tenha sido impedido durante algum tempo aos habitantes que lá se encontram a possibilidade de receber a visita dos seus advogados, em clara violação do art.o 20.o, n.o 2 da Constituição. Na verdade, nem se alguém estivesse na prisão poderia ver negado o seu direito a contactar com um advogado, quanto mais se estiver no seu domicílio.

 

Mas perante este verdadeiro escândalo, o que diz o ministro do Ambiente? Diz que neste processo o interesse público é o principal lesado e que as vítimas de abuso são eles, os poderes públicos. Não tenha dúvidas, senhor ministro, a lesão que os poderes públicos tiveram é muito maior do que o que sofrem os comuns cidadãos dentro do Prédio Coutinho, sem acesso a água, a luz e inicialmente impedidos de ter apoio dos seus advogados, por decisão de uma empresa pública sob a sua tutela. E é muito estranho o silêncio ensurdecedor de certos deputados ao Parlamento, que andaram durante tanto tempo a defender o direito à habitação e a atacar o direito dos senhorios à sua propriedade para agora se calarem perante o que se passa no Prédio Coutinho.

 

O Parlamento vai votar uma lei de bases da habitação onde, entre outras coisas, se proclama enfaticamente que “os imóveis ou fracções habitacionais detidas por entidades públicas ou privadas participam, de acordo com a lei, no objectivo nacional de garantir a todos o direito a uma habitação condigna” (art.o 4.o, n.o 2). Temos aqui o exemplo de como, actualmente, o Estado cumpre o “objectivo nacional de garantir a todos o direito a uma habitação condigna”: expropria um edifício habitacional para construir um mercado e pretende iniciar a demolição desse edifício com pessoas lá dentro, a quem entretanto corta a água e a luz. Há sempre uma grande diferença entre as proclamações enfáticas na lei e a dura realidade do nosso país.

Rádio Observador

COMO O ESTADO SE VIROU CONTRA NÓS

André Abrantes Amaral

Advogado

Eis como o poder político se vira contra os cidadãos em vez de os proteger: o prédio Coutinho foi permitido e legalizado e agora, por razões estéticas, querem demoli-lo. Os fascistas não fariam melhor.

Em Viana do Castelo foi construído um edifício que respeitava as regras estabelecidas pela lei e pela autarquia. Os pagamentos devidos foram feitos e as licenças exigidas emitidas. O prédio não é caso único já que era o que se gostava na altura. Se viajarmos de norte a sul de Portugal deparamo-nos com muitos casos semelhantes. Podemos não gostar (apesar de o gosto não se discutir), mas num Estado de Direito, feitos os devidos licenciamentos, os edifícios privados são isso mesmo: privados. Pertencem a quem os comprou. O prédio Coutinho é um caso paradigmático do poder político que se virou contra os cidadãos ao invés de os proteger.

No entanto, e apesar do óbvio, as autoridades não desistem do objectivo de derrubar o edifício. Alegam-se razões estéticas. Razões estéticas. O país fecha os olhos e encolhe os ombros enquanto os poderosos sobrepõem razões estéticas ao direito de propriedade. Ao direito à habitação na casa que se escolheu e que foi devidamente paga. Um dia, quando por razões estéticas alguém disser que o símbolo do PS fica mal na fachada no Largo do Rato e o país fechar os olhos e encolher os ombros saberão de quem é a responsabilidade.

É o que acontece quando nos distraímos com as causas fracturantes, que a maioria das vezes deviam ser aceites e seguir-se em frente. Perdeu-se o discernimento ao ponto das mentiras de Costa serem encaradas como de um mestre e as encenações de Centeno de um génio. Jerónimo de Sousa é visto como um avozinho simpático, Catarina Martins uma política assertiva e quanto a Marcelo Rebelo de Sousa ninguém percebe que não passa de um presunçoso cansativo. Para que a narrativa se mantenha o país precisa de adormecer (o que não é difícil tendo em conta o nosso historial) e para se manter adormecido é necessário que se continue a acenar-lhe a cenoura.

Um excelente exemplo disso mesmo é o voto de condenação da actuação de Cavaco Silva no buzinão da ponte 25 de Abril, que a maioria de esquerda aprovou na Assembleia da República. Perante tantos problemas concretos que nos afectam hoje em dia PS, PCP, BE e o PAN decidiram ‘bater no ceguinho’. Repudiar o que é passado e já não se muda. O que não tem remédio. Cavaco errou em 1994? Sem dúvida. O que sucedeu à época era prática corrente da sua actuação? Não. Era (e é) prática corrente das correntes comunistas em todo o mundo? Pois. O busílis da questão é precisamente este.

Os comunistas sovaram meio mundo e o outro e depois condenam o que sucedeu há 25 anos na ponte sobre o Tejo. Mas até nem precisamos ir tão longe para atingirmos o cúmulo da hipocrisia. Não precisamos analisar a longa e extensa experiência dos comunistas no que diz respeito aos Direitos Humanos. Basta recordar o comportamento do PCP no voto de pesar à morte de Fidel Castro e compará-lo com o relativo à morte de Frank Carlucci. Ou o voto dos comunistas portugueses (Bloco de Esquerda incluído) contra o pesar pela morte de manifestantes na Venezuela. Sim, caro leitor, leu bem: o Bloco de Esquerda.

Mas também não precisamos de exemplos tão dramáticos. Basta que nos recordemos de episódios fisicamente menos violentos. Lembrar-nos da reacção dos partidos de esquerda perante as políticas que, em 2011, conduziram o Estado à bancarrota e ao modo como se comportaram no processo de resgate. Ou seja, perante uma crise de financiamento grave, defronte da incapacidade de o Estado português pagar ordenados aos seus funcionários, pensões aos reformados e cuidados de saúde aos doentes, é importante que nos recordemos de como se comportaram os partidos de esquerda.

Sendo a esquerda politicamente solidária (é o que a própria repete à exaustão até acreditar) seria de esperar que a ênfase tivesse sido posta numa rápida resolução da crise do financiamento do Estado e no cuidado a ter na continuação da prestação das políticas de carácter social. Seria de esperar que assim tivesse acontecido, mas não aconteceu. Pelo contrário, PS, PCP e BE apostaram todas as fichas no combate a toda e qualquer medida que visasse resolver a crise para a qual contribuíram. Para a qual o PS contribuiu pelas razões por demais evidentes e para a qual os partidos de extrema-esquerda também contribuíram porque o seu discurso assenta em mais despesa pública sem a mínima preocupação de saber de onde vem o dinheiro, em que condições este chega a Portugal e quem o paga. Sem terem o mínimo cuidado em conhecer os custos sociais que as suas políticas comportam na vida das pessoas. O quanto custa ao país, e a cada um de nós, o BE e o PCP não terem escrúpulos nos esforços que encetam para elegerem deputados que desviam atenções votando condenações inócuas e vazias. Sinceramente não percebo por que motivo PSD e CDS não submetem ao Parlamento um voto de condenação pela actuação do governo Sócrates.

Episódios deste género vão-nos entretendo. Não é nada de novo, a história está cheia de casos semelhantes com a diferença que antigamente não se generalizavam à maioria da população. Noutros tempos a política era cómica, mas essa comicidade ficava-se por Lisboa (e mesmo aí não passava de um círculo dentro cidade). Ao contrário, hoje em dia, o disparate é disparado a torto e a direito e atinge o país por inteiro. A politização da sociedade (expressão já de si política), das pessoas, em que cada aspecto da nossa vida dá azo ao escrutínio feito pelo poder (e não ao contrário como seria normal num Estado de Direito) transformou a democracia num festival. Festa no meio da qual se acusa, se julga e se condena sem critério, sem proporcionalidade, sem equidade. Os fascistas não teriam feito melhor.

Observador

AS RÃS E O PRÉDIO COUTINHO

José Miguel Pinto dos Santos

 

Sobra a questão: como pode isto acontecer num Estado dito de direito? E não só isto, mas toda a arbitrariedade estatal e impunidade dos detentores de cargos públicos que constantemente é noticiada?

 

A monstruosa arbitrariedade do Estado português, que vende um terreno em Viana do Castelo para construção, aprova o projeto e licencia a edificação de um prédio semelhante a tantos outros em Lisboa e no Porto e, uns anos depois, vem dizer que aquilo é um aborto arquitetónico que tem de ser expropriado por tuta e meia e destruído já foi sobejamente exposta (aqui). A hipócrita indiferença de ativistas e bispos, e outras almas generosas e empenhadas, geralmente muito sensíveis às longínquas e fabulosas violações de direitos humanos nos Estados Unidos e em Israel, para com as violações estatais dos direitos constitucionais à propriedade e às “condições de higiene e conforto” habitacionais dos resistentes do prédio Coutinho também já foi denunciada.

 

Sobra a questão: como é possível que isto aconteça num Estado dito de direito? E não só isto, mas toda a arbitrariedade estatal e impunidade dos detentores de cargos públicos que constantemente é noticiada?[nota 1] Será que vivemos num despotismo asiático ou num absolutismo pombalino? Ou será simplesmente que pomos a nossa esperança onde a não devemos pôr e não aprendemos com os antigos? Esopo conta o seguinte:

 

“Chegou um tempo em que as rãs ficaram insatisfeitas por não terem ninguém que as governasse. Decidiram então enviar a Júpiter uma deputação a pedir-lhe que lhes desse um Rei. [nota 2] Júpiter, desprezando a insensatez do seu pedido, atirou um tronco velho para o lago onde elas viviam, e declarou-lhes: ‘Eis o vosso Rei’. As rãs ficaram inicialmente aterradas pelo estrondo e ondular que o tronco fez ao cair na água, de tal modo que que se esconderam nas profundezas mais esconsas do lago. Mas, pouco a pouco, ao verem que o tronco permanecia imóvel, uma por uma começaram a aventurar-se à superfície, & com a passagem do tempo, ganharam coragem & começaram a desprezá-lo de tal modo que até começaram a sentar-se em cima dele. Considerando que um Rei daqueles era um insulto à sua dignidade, enviaram a Júpiter nova embaixada, & rogaram-lhe que lhes tirasse o lerdo Rei que lhes tinha dado & lhes concedesse outro mais vigoroso. Júpiter, aborrecido de ser incomodado deste modo, enviou-lhes uma cegonha para as governar. Esta, assim que chegou, começou a comer avidamente as rãs uma a uma.”

 

E será que a nossa cegonha tem falta de apetite, ó rãs?

 

(O autor não segue o grafismo do novo Acordo Ortográfico. Nem a do antigo. Escreve como quer e lhe apetece.)

 

[Nota 1] O largo espetro de arbitrariedade e impunidade de baixo valor acrescentado vai desde aquela que põe a polícia na estrada a penhorar automóveis de quem se atrasa em pagamentos ao fisco mas permite atrasos de meses na atribuição de reformas, passa pela isenção do IVA aos os partidos e o “reembolso” a deputados por viagens não realizadas, até à endogamia governamental com empregos políticos e técnicos no aparelho de Estado. [nota 3] Casos de corrupção de alto valor acrescentado, certamente na memória do leitor, são óbvios demais para merecer menção.

[Nota 2] Rei: indivíduo do sexo masculino que representa e personifica o Estado e é a sua cabeça, embora o próprio frequente e figurativamente não a tenha. Na Suécia são brancos e na Swazilândia são pretos, facto que demonstra o racismo endémico existente no norte da Europa e a inclusividade e harmonia racial que caracteriza o sul da Africa. Desde tempos remotos que se acredita que a imposição das mãos por el Rei é cura santa, quando medicina e SNS falham, como testemunha o Doctor em Macbeth (Ato 4, Cena 3):

“Ay, sir; there are a crew of wretched souls

That stay his [el Rei] cure.

Their malady convinces

The great assay of art, but at his touch

—Such sanctity hath heaven given his hand

—They presently amend.”

A crença de que numerosas doenças incuráveis podem ser saradas através do toque das mãos d’el Rei (para quem ainda não percebeu o que Rei simboliza neste artigo, aqui fica a resposta: o Estado) não desapareceu com a implantação da República, apenas se transferiu para o Presidente, uma espécie de Rei com prazo de validade, tal como os iogurtes. Provam-no as filas de dignatários do regime que se formam em cerimónias oficiais para o aperto de mão do Chefe do Estado, ou os magotes de populares que se juntam espontaneamente para o mesmo efeito sempre que Sua Excelência deixa os palácios estatais. Entretanto, o ceptro que representava tradicionalmente a autoridade e poder d’el Rei, foi recentemente substituído por uma geringonça que gera sefies, que funcionam como atestado de saúde que justifica a falta ao emprego (mas apenas no caso dos funcionários públicos).

[Nota 3] A sub-representação de minorias étnico-raciais na vida pública, política e económica, a crise nacional do momento, certamente será resolvida de modo mais radical e efetivo, não pela introdução de quotas nos cursos universitários ou assentos parlamentares, mas pela imposição de quotas étnico-raciais nos afilhados, primos, irmãos e outra parentela dos dirigentes do PS.

[Nota final] O PAN, será um partido defensor das rãs ou das cegonhas?

A militância partidária tem uma visão vesga da vida política e consequentemente da sociedade civil, como não poderia deixar de ser. Enfunam-se nas suas próprias “ideologias” e convivem mal com as suas contradições. São intransigentes com todos aqueles que pensam de forma diferente. Então, a militância da esquerda, e da esquerda extremista, supera todos os patamares da vesgueira, porque se julga a única e legítima herdeira do 25A, a dona das causa democráticas e a reserva moral do sistema. E a gente, do outro lado da barricada e pacificamente, tem que aturar esta narrativa sempre muito mal encavacada e apelidada do pior.

Ponto um – O caso “Coutinho” em Viana do Castelo é um desses itens intransigentes que convém chutar para o lado. Os extremistas, sempre atentos e diligentes na defesa dos desprotegidos, meteram a viola ao saco e já não cantam grandoladas como era habitual.

Este imbróglio foi urdido por Sócrates, o célebre Secretário de Estado do governo de António Guterres, para a área do Ambiente. À sombra do programa “inovador” Polis, de duvidosa eficácia na correcção dos disparates urbanos cometidos pelos autarcas e para mostrar bom serviço ao chefe e também avançada sensibilidade ambiental, embirrou com o prédio “Coutinho” como muito bem poderia guiar as birras para as Torres das Amoreiras em Lisboa ou para a tralha construtiva da Quarteira no Algarve. Mas, virou bem para norte.

O polémico socialista, a contas com a Justiça, no processo “Marquês”, quis meter o bedelho numa construção habitacional legalmente licenciada e até bem conservada pelos moradores.

O prédio destoa na paisagem urbana?! É verdade que destoa. Foi um disparate! Sim! Que culpa têm os moradores de terem comprado os seus apartamentos e de usarem a sua privilegiada situação citadina, diante do rio, e com uma paisagem deslumbrante ?

O caso “Coutinho”, com mais de vinte anos de chatices, é um fenómeno paranóico dos socialistas que, na falta de melhores ideias e de respeito pela propriedade privada, avançaram de forma prepotente, e à custa do dinheiro dos outros, contra o sossego dos pacatos cidadãos que tiveram a lucidez e o capital suficiente para adquirir uma fracção habitacional nos idos de 1973.

Ponto dois – Não haverá mais mamarrachos por este país fora a precisarem de camartelo? Não cometeram os autarcas do regime os mais descarados atentados urbanísticos nas suas edilidades e de forma praticamente impune?

Citemos o disparate que se ergue no Campo da Vinha, mesmo ao nosso lado, e que desafia a história bimilenar de Braga e o bom gosto de uma urbe construída com inteligência por homens de visão. É, sem dúvida, um engulho estético para a sensibilidade de todos aqueles que têm olhos na cara e sentido da racionalidade.

Porque não avançam os socialistas bracarenses com uma petição política, frontal e determinada, para repor o que era equilibrado e harmonioso naquela ampla praça? O mesmo poderia acontecer com a “arena” do Galécia em Maximinos? Do estádio da Pedreira, devorador de recursos financeiros, nem é bom falar, porque se enquadra numa história de contornos esguios e de megalomanias difíceis de explicar. Tantos disparates que se cometeram nesta cidade ao longo do consulado mesquitista e que teve a complacência de muita e boa gente que carimbava o boletim de voto com a cruzinha no lugar certo, batia palmas e rasgava os maiores encómios a tão alta figura do poder local, por conveniência, por bajulice ou mesmo por medo.

Ponto três – Voltemos ao caso “ Coutinho”. A sociedade VianaPolis ultrapassou todos os limites das suas competências ao cortar a energia, a água e o gás, fazendo reféns nas suas próprias casas, uma dezena de irredutíveis moradores que não cederam às arbitrariedades e à chantagem de uma empresa que só actua quando tem as costas quentes. É triste acompanhar este processo desumano e abusivo, em que puseram em risco a saúde e a vida dessas pessoas que não se amedrontaram, perante a intransigência de uma “sociedade política” não eleita.

Tudo se passa numa altura de carência habitacional e de grandes constrangimentos financeiros. Quem vai, no final, pagar esta ofensiva desencadeada pela VianaPolis? Os números apontam para 35 milhões! É muito dinheiro só para destruir! Depois de destruído (?) construir-se-á o mercado municipal! Como é possível acontecer um caso deste num país pobretanas?!

Ponto quatro – Em jeito de remate: Não seria cultural e arquitectonicamente emblemático preservar o prédio “Coutinho” para servir de testemunho e um símbolo, vivo e presente, dos disparates cometidos pelos nossos versáteis autarcas? 

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