Joana Cardoso
Arquitecta em Londres
w
Quando Sofia fez dezassete anos, os pais encomendaram um retrato. Falaram com um pintor bem-parecido, de fama recente em círculos da alta roda, que lhes pintou a filha a óleo. A família orgulhou-se muito do resultado e expuseram-no no hall de entrada, onde todos os visitantes o podiam ver e gabar.
GOSTA DESTE CONTEÚDO?
- Não se esqueça de subscrever a nossa newsletter!
Do lado de lá da moldura imponente, a Sofia pintada fitava o firmamento. A altivez dos olhos verdes perdia-se para lá das paredes; a perfeição do colo tinha uma luz de pérola rara; a riqueza do vestido de seda reflectia a subtileza dos tons do mar. A Sofia verdadeira era uma jovem simpática, tímida e de sorriso pronto, mas a Sofia do quadro era uma deusa.
Sofia foi para a faculdade, encontrou o amor da vida dela e juntos tiveram quatro filhos perfeitos, que ela fez crescer, dando-lhes a mão a cada degrau da existência e deixando-os voar rumo ao firmamento dos sonhos. Trabalharam no duro, ela e o marido, desfrutando dos momentos bons da existência e suportando os menos bons. Viu a família perder toda a fortuna, viu o marido ficar gravemente doente e recuperar, como que por milagre – ele dizia sempre que era graças ao amor dela. Viu o pai definhar numa demência que lhe roubou toda a sua história, até eventualmente lhe roubar também o amor, e viu a mãe sofrer com a tristeza de um marido que não a reconhecia mais.
O mundo de Sofia viveu mudanças profundas. Crises e catástrofes, avanços tecnológicos e milagres da medicina, mudança de paradigmas e promessas de Apocalipse. Por vezes, punha-se a pensar no quadro dos seus dias gloriosos e tinha saudade de sonhos não cumpridos, da vida-página-em-branco, de saltitar com ligeireza em salões de baile refulgentes.
Certo dia, ela recebeu um telefonema. Era de um primo afastado, que ficara com a casa da sua infância na altura em que os pais perderam tudo. Com voz atrapalhada, o tal primo disse que ia vender a casa, mas que ainda haviam algumas relíquias do passado – trastes velhos, de valor puramente sentimental – que ela talvez quisesse guardar. Sofia meteu-se no carro e conduziu até à antiga mansão. O velho portão verde, antes tão bem pintado e oleado, estava ferrugento e rangia nos gonzos. A hera cobrira metade da parede exterior e a outra metade estava a descascar. Sofia subiu as escadas de pedra, perdida em memórias. Quando abriu a porta teve um choque – em frente a ela, a dar-lhe as boas vindas, estava o Quadro.
A obra de arte, de tão gloriosa memória, desfez-se à sua frente. Sofia viu uma pintura antiquada de uma rapariguita acanhada, vestida de modo levemente ridículo. Não viu nenhuma deusa, nenhum ideal de beleza e felicidade. O pintor – cujo talento era menor do que a fama – não tinha representado as suas feições especialmente bem, mas tinha conseguido apanhar a timidez da qual ela bem se recordava. As jóias e as sedas tinham perdido o seu brilho, e as cores esverdeadas do quadro misturavam-se todas, até a sua própria pele ganhar um tom esverdeado, bem diferente do brilho de pérola de que ela se lembrava com saudade.
Perante esta memória de perfeição destruída, Sofia sorriu. O seu olhar vagueou até ao espelho de pé, monstruoso e baço, e ela viu-se no presente – sem vestido de seda, sem jóias no cabelo, sem pele de porcelana, mas com uma vida de sabedoria e evolução. Sofia sempre tentara melhorar-se, corrigir os seus defeitos, e com os anos que passavam ia vendo progressos. Ia conseguindo domar a impaciência; espaçar as visitas dos ciúmes; erodir aos poucos os laivos de egoísmo. Sofia ia aprendendo com todas as suas experiências, tendo o cuidado de evitar que estas a amargurassem, apreciando-as como lições – por vezes muito severas – que ela podia usar como caminho rumo ao ponto inalcançável da perfeição. Cada ruga e cabelo branco eram na verdade medalhas merecidas de um caminho bem percorrido. Eram as marcas de um tempo que lhe dera tanto amor, provas que os seus filhos e netos eram bem reais; que os seus sucessos foram feitos de esforços; que os momentos duros a tornaram uma pessoa melhor.
Sofia continuaria a suspirar de saudade dos tempos em que os seus passos eram fáceis e as suas bochechas cor-de-rosa. Mas o quadro da sua juventude foi deixado naquele hall, empoeirado e velho, a moldura imponente carcomida pelo bicho da madeira. Ela já tinha há muito o verdadeiro quadro de beleza.