Editorial

Outra vez o aborto? Outra vez a mesma hipocrisia?
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Damião Cunha Velho

A lei que despenaliza a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), aprovada em 2007, é amplamente consensual, trouxe resultados positivos para as mulheres e era um assunto encerrado por estar bem resolvido. Porém, há quem queira voltar ao tema: uns para reverter a lei, outros para aumentar o período de gestação em que se pode abortar.

Miguel Costa Matos, deputado e presidente da Juventude Socialista, quer que a IVG passe das 10 semanas para as 14 semanas de gravidez, disse-o a 30 de agosto. Paulo Núncio, deputado e vice-presidente do CDS-PP, quer revogar a lei e proibir o aborto, disse-o em plena campanha eleitoral, em fevereiro, defendendo até um novo referendo com esse propósito. Para mim, tanto Núncio como Costa Matos estão errados. Por duas razões que tocam em ambos: a primeira, porque o aborto é um direito das mulheres, um direito com limites; a segunda, porque não faz sentido voltar a discutir um assunto em que a maioria dos portugueses está de acordo.

Sempre defendi a descriminalização do aborto por entender que a mulher é dona do seu corpo, não deve ser obrigada a dar à luz um ser não desejado e, com isso, comprometer o seu futuro. Porém, entendo que as 10 semanas previstas na lei para o fazer são o tempo suficiente para tomar a decisão de abortar ou não. Prolongar esse tempo, exceto em casos de crime sexual, violação, malformações do feto, quando a vida da mãe está em risco ou fetos inviáveis – o que já está previsto na lei – seria desresponsabilizar aqueles que depois de um ato sexual consentido não são capazes de assumir as consequências desse mesmo ato, dando-lhes já a lei a possibilidade de escolher. Em pleno séc. XXI, com o acesso tão facilitado à informação, não é aceitável que alguém possa abortar para além das 10 semanas de gravidez, salvo os casos referidos.

Miguel Costa Matos acha que uma mulher com 10 semanas de gravidez pode ainda não saber que está grávida, é “demasiado curto” e que “as mulheres demoram tempo”.

Excluindo casos muito excecionais de gravidezes assintomáticas, parece-me muito pouco plausível e até absurdo que uma mulher não se dê conta de alterações no seu corpo (a gravidez não é discreta) e, ao mesmo tempo, não relacionar isso com o facto de ter tido relações sexuais sem precauções. Aliás, quem tem relações sexuais sem a toma de anticoncecionais ou o uso do preservativo e não quer ter filhos, independentemente de ter ou não sintomas, tem, para seu benefício, o dever de tomar a pílula do dia seguinte e de fazer testes de gravidez, à venda nas farmácias, sem receita médica, para, caso engravide, poder atempadamente abortar.

Miguel Costa Matos deve pensar como eu e se leu os relatórios da DGS saberá que a maioria das mulheres que fez a IVG, fê-lo às 7 semanas de gravidez, precedida de uma consulta às 6 semanas. Portanto, o argumento “tempo” cai por terra e não faz sentido querer aumentá-lo. Mas, como os interesses políticos falam mais alto, acredito que Costa Matos queira piscar o olho à esquerda radical que é hábil a confundir liberdade com libertinagem.

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Proibir o aborto, como defende Paulo Núncio, seria um regresso civilizacional assinalável, curiosamente muito apreciado por uma direita conservadora, católica e mais à direita do CDS.

Já experimentamos durante décadas essa proibição e verificamos que quem tinha dinheiro sempre o fez em boas clínicas, e que muitas dessas mulheres e seus cônjuges se manifestam publicamente e hipocritamente contra a IVG em nome do conservadorismo religioso que “professam”. Quem não tinha dinheiro e o fez, fê-lo em casas clandestinas, a preços baixos, sem quaisquer condições de higiene e segurança e sem profissionais habilitados, com consequências muitas vezes trágicas como a morte ou a infertilidade, sempre com o terror de isto lhes poder vir acontecer, o que também deixa marcas. Também experimentamos desde 2007 a despenalização da IVG e vimos como isso acabou com o negócio ilegal do aborto, como a saúde das mulheres foi salvaguardada, não se registaram mortes, e como a IVG até tem vindo a diminuir. A história permite-nos fazer as devidas comparações.
O direito de uma mulher abortar é legítimo e nunca deve ser considerado um crime até às semanas de gravidez que estão agora previstas na lei. Cabe a cada mulher decidir, em consciência, o que fazer com o seu corpo. E não é uma decisão fácil que se toma de ânimo leve. As razões são diversas, quase sempre se prendem com um futuro que não se pode dar a uma criança, sendo que a principal é socioeconómica. De qualquer forma, nenhuma instituição que não seja exclusivamente médica não tem o direito de condicionar o que quer que seja sobre a consciência de uma mulher nestas circunstâncias. Deve, aliás, ser aconselhada e acompanhada por especialistas da Saúde nessa mesma decisão, o que acontece desde 2007 e com excelentes resultados.
A aposta não deve ser na criminalização do aborto, nem no aumento das semanas para o fazer, mas na educação e no planeamento familiar. Se aprofundarmos ainda mais este assunto vemos que as gravidezes indesejadas, apesar de tocar nos mais favorecidos, têm uma relação muito pertinente com a pobreza e consequentemente com o acesso à Educação. A prioridade seria acabar com a pobreza e seguramente que o aborto também diminuiria. Só que esse é o caminho difícil, com resultados a longo prazo, menos sedutor para quem aprecia a política imediatista como esta nova geração de governantes.
Proibir o aborto não vai acabar nem diminuir o número de abortos, uma mentira que se tenta incutir em nome da “defesa da vida”, e aumentar o tempo para o fazer não vai diminuir a irresponsabilidade, algo que a Educação ajuda combater. Isto é tudo uma conversa do faz de conta, hipócrita dos pés à cabeça, que espero não ter pernas para andar. Com Paulo Núncio, quem tem uma vida difícil iria pagar um preço elevado; com Miguel Costa Matos, teríamos todos que repensar o conceito de “Liberdade”!

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