Pensando a criação literária

«O escritor é um ser desgraçado, infeliz em relação aos objectivos traçados, espécie de abutre voraz pairando sobre as palavras mortas, e pretende – pelo menos pretende – dar-lhes uma vida que estabeleça comunicação com o seu o público, e consigo próprio.»

Quem o escreveu foi Joaquim Evónio de Vasconcelos, um ilustre madeirense, coronel do exército português, contista, poeta, e “déclaimer”, como poucos, e meu admirado e saudoso amigo.

Embora considere significante esta reflexão, não concordo inteiramente com a afirmação do autor, que também foi um notável poeta. E não concordo porque o escritor não é coagido a criar, na maioria dos casos ele cria por impulso próprio, quiçá por uma questão de exigência do seu altar ego, e no fundo para se dar satisfação por considerar dever divulgar as suas ideias, sem, no entanto, as querer “impor” ao seu leitor.

Excluindo aqueles que vivem exclusivamente da sua escrita – e esses, sendo profissionais, tiveram de criar os seus métodos de trabalho –  as ideias de uma autor, mormente as de um poeta, raramente correspondem a objectivos traçados. Ao contrário; elas flúem ao sabor da inspiração do momento, quantas vezes deixando o seu criador perplexo ao reler o que escreveu. Não falo de cátedra, mas por experiência própria, naturalmente. Embora admita que cada caso é um caso.

A este propósito diz-nos Kátia Rebello, mestra em Teoria Literária: “Os mistérios da criação literária surgem diante dos olhos dos próprios autores quando escrevem as suas obras. Alguns autores tentam explicar o modo como criam. Entretanto, às vezes, é difícil para os teóricos não ficcionistas absorverem tal compreensão pelo facto de não lidarem com a arte da criação”.

Na verdade, tudo o que alimenta os nossos sentidos e se projecta em sensações e sentimentos, as memórias que nos afloram, ou aquelas de que nos recorremos, os sonhos que nos povoam, tudo isso serve o crivo da imaginação. Numa palavra; além da sua experiência pessoal, o mundo inteiro e o que dele vai sendo conhecido, servem a inspiração de um autor.

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

Mas escrever é muito mais que plasmar palavras na tela de um computador. Desde logo é um acto de comunicação, e como tal tem de servir uma ideia consistente de uma forma disciplinada e responsável.

É, sobretudo, um acto de consciência que assiste a responsabilidade de transmitir a outrem algo que consideramos importante e valioso segundo critérios de avaliação ditados pela nossa própria essência.

Continuando a apoiar-me na minha experiência pessoal, e sendo por hábito um homem atento à vida, quantas vezes me basta assistir ou tomar conhecimento de algo que considero insólito, ou que por algum motivo me chamou a atenção, para logo me inspirar a criar uma crónica, ou mesmo um breve apontamento. Já no domínio do conto, o género não costuma motivar-me, embora tenha escrito alguns no passado. É um tipo de prosa que funciona no estilo da  narrativa, e esta quase sempre exige a mistura de notas ficcionadas, e essa mistura francamente não me atrai. Mas sempre li alguns de bons autores, e faço-o com agrado, não o nego.

 

A CRÓNICA

Por alguma razão, a ucraniana naturalizada brasileira Clarisse Lispector terá chamado aos cronistas os “espiões da vida”. Enfim, liberdades de expressão de que se servem muitos escritores para melhor significar o que pensam.

Através da faceta opiniosa do escritor – preferencialmente desprovida de qualquer presunção – este tipo de texto foca-se bastas vezes numa atenta análise sobre uma qualquer questão momentosa, que recusa o tom meramente censório para preferir apoiar-se em princípios de pura racionalidade justa e (eventualmente) moralista.

Longe de se considerar um filho menor da literatura, a Crónica é hoje considerada uma obra muito valorizada em termos de comunicação moderna, e está provado que a sua linguagem sintética e objectiva é passível de poder captar melhor atenção dos alvos a que se dirige, e assim lograr os seus objectivos. Esta lógica funda-se no facto da sociedade actual apresentar uma acentuada perda de hábitos de leitura, por todas as razões por demais conhecidas.

Já na poesia, mormente a de autores que continuam a preferir a forma clássica para se exprimir, não é por acaso que o soneto sempre ocupou, e continua a ocupar um lugar privilegiado. Na realidade, não é simples, bem pelo contrário, construir uma história nuns breves catorze versos, em que a primeira estrofe propõe e lança o mote, a segunda desenvolve-o, a terceira prepara e justifica o desfecho a que quarta é destinada. E tudo isto respeitando métrica, rima, e ritmo de leitura. O resto depende da qualidade e inspiração do seu autor.

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Acabo de defender as duas modalidades literárias que decididamente escolhi, depois de haver deambulado largos anos experimentando outras veredas da literatura, quiçá também interessantes.

Que me seja perdoada esta tendência.

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