Editorial

Quando as palavras doem tanto como a realidade 

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Como reagir às declarações de alguém que afirma que em Gaza não há fome nem sede, que nunca houve e que até há gordos em Gaza?

Se essas palavras viessem de um cidadão comum, poderíamos pensar que estava mal-informado. Se viessem de alguém esclarecido, poderíamos pensar que se tratava de uma piada de mau gosto. Mas, quando quem diz isso é o embaixador de Israel em Portugal, a questão, pelo tom, contexto e conteúdo, torna-se grave.

Estas declarações, feitas por alguém que deveria ser um representante da diplomacia e, por isso, sensato e equilibrado ao expressar-se em público, num contexto de uma guerra sangrenta, são um insulto à inteligência e, acima de tudo, à humanidade. Todos já vimos as imagens devastadoras de Gaza após o dia 7 de Outubro. Todos sabemos que a ajuda humanitária, até ao cessar-fogo, foi sempre bloqueada ou limitada, agravando ainda mais a fome e a sede na região. As várias agências humanitárias e de direitos humanos presentes no terreno relataram isso de forma clara e inequívoca.

Quando o embaixador Oren Rosenblat faz estas afirmações ao vivo na televisão, sem demonstrar a mínima empatia pelo sofrimento humano, a única reação possível é um misto de indignação e repulsa. A sua insensibilidade é tão chocante que, talvez, o próprio merecesse ser posto a pão e água até entender o martírio diário de quem vive em Gaza. É que, em Gaza, não faltou “só” pão e água, também faltou oxigénio a recém-nascidos quando Netanyahu mandou cortar a eletricidade aos hospitais.

Helena Ferro Gouveia, chamada a comentar as declarações do embaixador na CNN, não só corroborou as suas palavras como tentou justificar a escolha das mesmas, sugerindo que o embaixador não domina a língua portuguesa e que, se tivesse falado em inglês, a frase soaria diferente. Ainda assim, reafirmou como “factual” que não existe fome em Gaza, refugiando-se, de forma tão conveniente como vergonhosa, em critérios técnicos sobre a definição de fome e pondo em causa a credibilidade das muitas fontes que o testemunharam. É inacreditável que uma “especialista” em assuntos internacionais, que deveria primar pela honestidade intelectual e isenção, venha reforçar tais declarações insensíveis e, em toda a linha, desconectadas da realidade, uma vez que, já em outubro, segundo as ONG no local, 6% da população vivia com fome catastrófica e toda estava em risco de fome persistente, referindo até que “há famílias que não bebem água potável há meses e que passam dias seguidos sem comida”.

O mesmo embaixador ainda se deu ao luxo, como se de uma diversão se tratasse, de ironizar as notícias sobre a morte de crianças pelo frio em Gaza, tratando como “piada” os relatos da imprensa portuguesa. Como pode alguém, que vive confortavelmente agasalhado e alimentado no mesmo Portugal que eu, com as calorias e o oxigénio suficientes para poder raciocinar, olhar para tamanha tragédia – que já tirou a vida a 46 mil seres humanos, a maioria crianças, mulheres e idosos – com tamanha cegueira e desprezo?

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Esse tipo de postura não apenas ofende, mas desumaniza. Põe num plano de inferioridade o semelhante. É o exemplo perfeito de como se podem transformar as palavras em balas, em mais guerra, contra a dignidade humana. No caso do embaixador e daqueles que tentam defendê-lo, como Helena Ferro Gouveia, estamos perante uma combinação de insensibilidade e arrogância confrangedoras que não deveria ter palco nem ser tolerada, uma vez que não se trata de contraditório, mas de amiguismo. Ao tolerarmos, estamos a contribuir para algo bem pior: a legitimação da crueldade!

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