Editorial

A RELAÇÃO MÉDICO/DOENTE EM TEMPOS DE PANDEMIA – A VISÃO DE UMA INTERNA DE MGF
Picture of Ana Sofia Barbosa

Ana Sofia Barbosa

Ana Sofia Barbosa

Médica interna de Medicina Geral e Familiar na USF Lethes

Na reta final do meu internato, quando me julgava já “quase especialista” voltei a sentir a inquietação dos primeiros tempos como interna. De repente volta a ser tudo novo e desconhecido, esta nova doença que carregamos nos ombros e nos enche de incertezas e ansiedade – a pandemia COVID 19 – chegou sem tempo de preparação e sem prazo para terminar.

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

Tivemos que readaptar as nosssas consultas, começamos a trabalhar com colegas que antes não faziam parte da equipa, deixamos o gabinete de todos os dias, agora já não é nosso mas de todos. O uso de equipamentos de proteção individual (EPIs), tão distante da prática clínica em medicina geral e familiar impôs-se como rotina obrigatória. No final de cada turno procuramos sedentos por nova evidência de forma a prestar os melhores cuidados aos doentes.

A atividade assistencial programada foi suspensa e tivemos que encontrar novas formas de seguimento dos nossos doentes. O telefone que tantas vezes desdenhamos tornou-se uma ferramenta essencial e tem permitido acompanhar de perto os doentes crónicos. Neste novo modelo assistencial encontrámos novas facetas da relaçao médico-doente. Entrámos em casa do doente, contactámos com ele no seio familiar, onde aí também se alteraram as rotinas e se vive o medo do contágio. De repente a empatia ficou mais fácil, mais genuína, médico e doente têm que se adpatar às novas contingências e o sentir “com o outro” é agora muito mais intuitivo. Pela primeira vez senti na voz dos meus doentes um cuidado, uma preocupação, quase que um “paternalismo invertido” do doente para com o médico “cuide-se Sra. Doutora”, “Obrigado e tenham cuidado”, são expressões que entoam genuinamente do outro lado do telefone e nos renovam o folêgo para continuar nesta dura jornada.

Mas nem todas as consultas podem ser feitas pelo telefone, a doença aguda mantém-se como uma realidade e nem todos os motivos são passiveis de resolver por teleconsulta. Alturas há em que é preciso olhar o doente e o exame objetivo não pode ser dispensado. Também aqui a realidade da relação médico/doente é outra: a máscara rouba muita da linguagem não verbal, perde-se parte da expressão facial e limita-se a comunicação numa população envelhecida cuja diminuição da acuidade auditiva encontra na leitura dos lábios uma ferramenta valiosa. O medo de contágio que vejo no olhar do doente quando entra no gabinete contrasta com a dificuldade em manter a distância social.

Numa altura em que tanto se fala na humanização dos cuidados, a pandemia COVID 19 veio mostrar-nos o quão importante é este processo. A distância social que se impõe aproximou-nos, tornou-nos mais humanos, mais alerta para as dificuldades do outro, mais empáticos. Apesar de todas as dificuldades estamos a crescer como profissionais de saúde, mas sobretudo como seres humanos que sentimos e que cuidamos. Na incerteza do futuro preserveramos na necessidade de continuar a prestar os melhores cuidados aos nossos utentes e sem dúvida que o fortalecimento da relação médico/doente será um ganho inegável na nossa prática clínica como médicos de família.

 

Mais
editoriais

Junte-se a nós todas as semanas