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A reunião dos saberes e a literariedade em “Nenhum espelho reflete seu rosto”

Logotipo Crítica Literária

Alexandra Vieira de Almeida

Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ) *

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O romance de Rosângela Vieira Rocha, Nenhum espelho reflete seu rosto (Arribaçã, 2019), alia a análise profunda da psicologia humana à literariedade da narrativa.

O livro começa com um telefonema de um psiquiatra e psicanalista que solicita a ajuda da narradora-personagem Helen, dona de uma joalheria. O médico pede que Helen relate a ele dados sobre sua relação com Ivan Hernández com quem sua paciente também se relacionou. A paciente que não pode ser mencionada, por ser uma figura pública, passou por uma experiência de choque, traumática com relação a esse argentino e vive num estado de mutismo e imobilidade, caracterizando-se pela petrificação e chegando ao estado de mineralidade frente a fatos impactantes que a acometeram em sua relação com Ivan. Cabe à Helen o papel de intervir na situação para que a paciente retorne ao seu estágio de humanidade e convivência social. Só que Helen vai ter que arrancar intensas feridas que foram cicatrizadas com o tempo, após um rearranjo na sua vida. Ela aceita a tarefa e vai relatar por meio de e-mails, numa espécie de “monólogo epistolar eletrônico” sua vivência com esse ser que é descrito por seu narcisismo perverso, ou seja, “invertido”.

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Logo no início do romance somos levados pelo aspecto misterioso e enigmático do romance. Rosângela Vieira Rocha cria expectativas no leitor a ponto de ele tocar a esfinge para que ele decifre suas incógnitas, pois senão, será devorado pelo monstro fabuloso. Não sabemos de antemão o que aconteceu com essas duas mulheres, mas cabe à força literária de Rosângela desatar ao longo do livro, com surpresas e fatos inusitados, o nó górdio desse processo de mutilação dos eus, praticado por Ivan, o vilão da história. Percorremos as dobras de sua narrativa e nos adentramos nos movimentos desse mar de dentro, que mostra ondas desiguais e não monótonas. Seu romance tem um ritmo firme que acompanha o olhar do leitor o tempo todo. Somos levados pelo universo da psicologia das personagens e aí reside a grande força nesse romance excepcional, pois a partir do poder da literatura mais rica e diversa podemos conhecer a psique humana.

O seu livro é uma verdadeira aula sobre o comportamento humano. E não é disso que a literatura sobrevive? Das relações humanas entre os seres, criando-se um Humanismo presente nas suas páginas magistrais?

Benedito Nunes, no seu belíssimo livro, que faz uma leitura sobre a obra de Clarice Lispector, O drama da linguagem, define a literatura clariciana como “autodilacerante”, penetrada pelo “problema do ser e do dizer”. E para isso, Rosângela utiliza com grande proeza e maestria a narração com focalização interna, que segundo Genette, é “quando o narrador conta através do que sabe e vê o personagem”.  Temos aqui uma narração em primeira pessoa, em que a narradora-personagem Helen narra os fatos e é ao mesmo tempo personagem da história e é caraterizada por sua extrema atividade e mobilidade ao longo do livro, vendo as personagens com seu olhar pessoalizado. A sua trama é intrigante e nos envolve na sua malha dramática, pois o livro já começa com a tensão inicial, sendo uma obra tensa e densa.

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O trabalho da joalheria da narradora-personagem vem de seu interesse desde os 11 anos, aprendendo o serviço com o pai. E Rosângela fia belamente mais uma rede de saberes e artes. Além da psicologia e da literatura, ela arquiteta uma relação brilhante entre a arte das joias e a arte do literário que são próximas. O trabalho minucioso com a joalheria é o artefato do grande escritor que tem de lapidar com esmero seu livro. Tanto num quanto no outro, reconhecemos a dimensão perfeita das combinações possíveis e seu universo de diversidade. Rosângela é perfeita na sua narrativa, ao conjugar as partes num todo harmonioso e preciso.

No Dicionário de símbolos dos grandes mestres Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, temos a origem e o significado de joia: “Pierre Guiraud salienta (GUI, 171) que as palavras bijou (joia) e joyau (gema) derivam ambas do vocábulo joie (fr. arc.: joia; fr. mod.: alegria, júbilo, contentamento etc) que é um substantivo formado do verbo francês jouir (gozar, desfrutar, fruir etc)”. A partir de um processo de lapidação do material bruto, encontramos o refinamento e o burilar de um trabalho de grande paciência e dedicação como é o trabalho de escritura de Rosângela, que utilizou de um grande processo de pesquisa sobre os saberes variados que encontramos no seu livro, como a ourivesaria, o cinema, a música, a literatura etc com suas intertextualidades sobre o passado.

Helen mesma adquire sua independência, pois é ela que desenha suas joias: “Aprendi, por necessidade, a desenhar o que agrada as pessoas atualmente.” A mãe de Helen não via com agrado esse seu interesse por joias, diferentemente de seu pai.  E, como filha única, sua mãe tinha outras aspirações para Helen. A mãe dela tem o gosto por livros, pela leitura e é de extrema beleza a descrição de sua mãe lendo com os pés na água. Assim, seu livro percorre, ao mesmo tempo, a beleza e o lirismo de certas passagens com a perversidade na sua convivência com Ivan, o argentino que ela conheceu nas redes sociais.

O livro se divide numa cabeça bifronte, pois Helen narra seu passado com Ivan e suas viagens para Buenos Aires e outras localidades da América Latina e o tempo presente, na sua preocupação em lançar suas joias desenhadas por ela numa coleção que será exibida futuramente para que ela obtenha o reconhecimento merecido. O livro é dividido pelos e-mails em vários capítulos para o Dr. Jorge Campos, alternados com a narração em outros capítulos, seguindo uma sequência: e-mail X narrativa presente. No total são 23 e-mails, que culminam numa revelação analítica surpreendente.

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Há um processo de desmineralização na vida de Helen, que passa da brutalidade e agressividade das situações para a suavidade do desmantelamento do passado. A natureza bruta ganha contornos de arte e cultura, lapidando seu ser e fugindo dos perigos da vida com Ivan. As relações fragmentadas vão adquirindo leveza e harmonia, após uma tempestade de ódio e insensatez. É preciso juntar as peças isoladas, formando um todo compreensível para sua experiência com relação ao mundo. Aqui os traumas e as fragilidades humanas são expostos sem nenhuma intimidação. A continuidade familiar (pai e filha) se dá no processo de reconstrução da persona a partir do seu trabalho na sua própria joalheria.  A morte de seus pais num acidente é uma experiência traumática. Ela vai reviver o trauma a partir de Ivan, um narcisista nato. Com Ivan, Helen só tem contato com as máscaras dele. As digressões, em meio à trama com o psiquiatra, vão se desenvolvendo e, assim, temos contato com a origem do seu trabalho e conhecimentos. 

A autora consegue despertar, magnificamente, a curiosidade do leitor, criando várias expectativas e surpresas ao longo do livro, que não tem nada de previsível. Ao contrário, a imprevisibilidade é sua arma mais literária, criando-se, assim, lacunas, vazios, que serão preenchidos pelo leitor inteligente e perspicaz. Ela sabe criar como ninguém um ambiente, um clima de suspense.

Há também um choque e um paradoxo admirável entre o universo das joias e a violência de Ivan, produzindo-se os deslocamentos positivos na narrativa. Temos a sabedoria das joias, uma aprendizagem no seu livro para o leitor. O conhecimento que ela tem das pedras preciosas é fantástico, revelando sua origem e simbolismos. O conhecimento das gemas é algo concreto, que é levado, belamente, para o campo do ser, do abstrato e simbólico. Esse universo contrasta com o mundo de Ivan, que não revela nenhuma beleza e delicadeza, só o mundo narcísico de um mal que acomete nossa civilização.

A ilusão da Eco-Helen com relação ao Ivan-Narciso é de negação do afeto, que a leva ao mundo de desolação. O narcisismo perverso é o oposto do reflexo no espelho num processo de autoconhecimento. Ivan não se conhece, não se reflete seu rosto numa escolha voluntariosa pela persona. A máscara cobre todos os espelhos da introspecção e espiritualidade. Vejamos o que diz Thomas Bulfinch sobre a relação entre a ninfa Eco e Narciso: “A ninfa viu Narciso, um belo jovem, que perseguia a caça na montanha. Apaixonou-se por ele e seguiu-lhe os passos. Quando desejava dirigir-lhe a palavra, dizer-lhe frases gentis e conquistar-lhe o afeto! Isso estava fora de seu poder, contudo”. Ao contrário da Eco mítica, que se transforma em rochedo, se mineralizando, Helen se transforma numa Eco emancipada que tem voz e poder. A desmineralização das mulheres é de extrema beleza em sua obra. É preciso lapidar a pedra bruta em joia rara e vivaz, que tem viço, vida.

Os e-mails numerados para o médico por Helen demonstram grande capacidade de ordenação, uma organização em meio ao caos da vida: “Meu primeiro contato com Ivan Hernández deu-se virtualmente, através de uma rede social”. Inicialmente, Ivan não revela nenhuma patologia a partir das mensagens e telefonemas. Mas no processo de convivência física entre os dois, percebemos as ambiguidades dele, que se mostra gentil e grosseiro ao mesmo tempo. Ele é um “lago profundo e intrigante”, tanto para Helen como para o leitor. Helen faz sua leitura dele. Nós fazemos a nossa e cabe ao psiquiatra e psicanalista ser outro leitor dentro do romance, mas que não tem voz e contestação pela proposta inicial da narradora-personagem, que queria fazer nos e-mails, as cartas digitais, um monólogo e não um diálogo. Além dessas histórias, temos enredos paralelos, com personagens secundários, como caixinhas dentro de caixinhas.

O romance, por sua complexidade, apresenta vários focos e histórias, com outras miudezas e assuntos. Sua obra apresenta avanços e recuos. As confissões de Helen revelam o caráter confessional da obra por meio de cartas digitais, mas que não apresentam confrontos com Dr. Jorge Campos, para que nenhum preconceito venha à tona.

Ivan tecia muitos elogios à Helen, mas ela tem gastos financeiros com ele, praticamente o bancando em tudo, o que é um disparate.  Ivan a considerava “inteligente, culta e bem-informada”, como uma mulher de esquerda poderia ser. É forte a sua “psicologização da linguagem”, a força das personagens sem máscaras e com máscaras, ora escondendo ou revelando suas personas. Mas isso não quer dizer que o literário fique de fora, pois é exatamente a relação riquíssima entre a psicologia e a literatura, que cria a literariedade de seu livro, que por meio de outro saber faz florescer a verdadeira literatura em toda a sua dinamicidade e transdisciplinaridade. A sutileza na linguagem de Ivan é seu esconderijo. O avestruz esconde sua cabeça na areia e podemos perceber o quanto nossa percepção é falha num primeiro momento.

O processo de autorreflexão de Helen não se dá num primeiro momento, só no tempo presente ela é capaz de analisar profundamente a questão. A linguagem interiorizada no livro nos apresenta a carne de dentro com toda sua umidade e feridas. É implícita em sua linguagem a arte da joalheria como a arte de escrever bem o romance, o que Rosângela Vieira Rocha faz de forma excepcional.  Ela faz uma análise minuciosa da psicologia dos gestos, das vestimentas, do olhar, das conversas, das palavras, toda uma gama complexa de elementos que combinados formam um conjunto a ser dissecado com precisão cirúrgica.

No início, Helen tem um encantamento. Depois, com o tempo, ela passa por um processo de estranhamento. O diferente, o estranho e o que foge à normalidade afloram na vida de Helen, causando reações impactantes em sua vida. No livro, temos a análise minuciosa do interior das pessoas e também do ambiente a partir das viagens. Também somos levados a belos pontos turísticos no romance. Temos também, no seu livro, o diálogo entre a ausência e a presença. Como a ausência do ser (o virtual) nos engana, revelando, que na presença física, nos deparamos com outro universo. Há um duelo, um choque, entre esses elementos. Ivan tem “estranhas reações e súbitas mudanças de humor”

Encontramos o mundo inusitado na sua narrativa. Como o inorgânico e o orgânico se misturam, pois temos as similaridades entre a arte das joias e as atitudes humanas, dando vigor às pedras num processo de animação dos objetos. O universo das joias adquire um movimento próprio em sua narrativa, em que a joia simboliza a parte pelo todo, a metonímia do próprio processo de criação de seu romance. O sentido simbólico e esotérico também é enaltecido, nos mostrando uma personagem mística. Assim, podemos perceber a valorização do sagrado, como encontramos nas obras do grandioso Jung. Rosângela até cita um trecho de Jung, apresentando também o teor ensaístico de seu romance: “Jung considerava o anel o símbolo perfeito, cuja forma circular supõe o infinito”.

Portanto, os olhares de ontem e o de hoje de Helen são diferenciados. Com seu olhar crítico presente, ela consegue analisar a situação com o distanciamento necessário no tempo. Tanto ela quanto Ivan tinham ritmos e tempos diferentes. Não se sintonizavam, de verdade: “Eu via tudo isso de maneira bem menos clara do que a descrita agora”. Ou ainda: “Eu deveria ter prestado mais atenção às minhas percepções”. O olhar clínico de Helen nos mostra o “narcisismo perverso” e a “toxidade” daquela relação imatura. Ele tecia a presa num jogo de teia de aranha. Assim, vários saberes são revelados na obra de Rosângela que confeccionou uma joia ímpar e belíssima para os olhares atentos do leitor, um livro que não quer se calar, mas apresentar toda a sua riqueza e potencialidade de uma exímia escritora que nos leva a novas leituras sobre a psique humana num romance tão atual e pleno de significados.

Autora: Rosângela Vieira Rocha nasceu em Inhapim, MG, e mudou-se para Brasília em 1968. Jornalista, escritora e professora aposentada do Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da UnB, é advogada e Mestre em Comunicação Social pela ECA/USP. Tem treze livros publicados, para adultos e crianças. Véspera de Lua,Editora da UFMG, (romance), 1990, ganhador do Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG – 1988; Rio das Pedras, Secretaria de Estado de Cultura, 2002, novela vencedora da Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, Menção Especial no Prêmio Graciliano Ramos, da União Brasileira de Escritores, além de ter sido classificada entre os dez finalistas da 4ª. Bienal Nestlé de Literatura Brasileira; Pupilas Ovais, (contos), LGE Editora, 2005, selecionado para obter o apoio do FAC/DF; A festa de Tati (infantil), Franco Editora, 2008; Fome de Rosas (romance), 2009, FAC/Nossa Cidade, Dias de Santos e Heróis (infantil), Editora Prumo, 2009, Três contra um (infantil), Franco Editora, 2011, Nem tudo foi carnaval, (juvenil), Editora RHJ, 2012; Janaína, a bailarina (infantil), Franco Editora, 2012; O macuco Felício (infantil), Editora Cortez, 2014; e O vestido da condessa (infantil), Franco Editora, 2014, O indizível sentido do amor (romance), 2017, Editora Patuá. Seu 13º livro, o romance Nenhum espelho reflete seu rosto, ed. Arribaçã, foi lançado no dia 11 de junho de 2019, em João Pessoa, PB. Participou da Antologia do Conto Brasiliense, organizada por Ronaldo Cagiano. Brasília: Projecto Editorial/Livraria Suspensa, 2004; Mais trinta mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, org. por Luiz Ruffato, Editora Record, 2005, Todas as gerações – o conto brasiliense contemporâneo, organizada por Ronaldo Cagiano, LGE Editora, 2006, 7º Prêmio Escriba de Contos, Secretaria Municipal de Ação Cultural: Piracicaba, 2009, de Balões Coloridos – Crônicas, Editora Via Literária, Porto Seguro, 2010. Seu nome faz parte do Dicionário de Escritores de Brasília, org. por Napoleão Valadares, 2ª e 3ª edições (2003 e 2012), da História da Literatura Brasiliense, org. por Luiz Carlos Guimarães da Costa, Brasília: Thesaurus, 2005, de Mulheres- Prosa de ficção no Brasil 1964-2010, org. por Marcia Cavendish Wanderley, Rio de Janeiro: Ibis Libris/FAPERJ, 2011 e do Dicionário de Mulheres, org. por Hilda Agnes Hübner Flores, Florianópolis: Editora Mulheres, 2011.

Tem textos avulsos premiados, como a crônica “Um homem indelicado”, que obteve Menção Honrosa no VII Concurso Rubem Braga de Crônicas, promovido pela Academia Cachoeirense de Letras. Foi colunista da revista literária digital Verbo21. Atualmente, tem colunas nas revistas culturais e literárias Germina e Flor de Dendê.

 

“Nenhum espelho reflete seu rosto”, romance ora lançado pela Arribaçã Editora, trata das relações tóxicas e abusivas, tema que tem despertado muito interesse, especialmente em tempos de relacionamentos virtuais.

Alexandra Vieira de Almeida é poeta, contista, cronista, resenhista e ensaísta. Tem Doutorado em Literatura Comparada (UERJ). Atualmente é professora da Secretaria de Estado de Educação (RJ) e tutora de ensino superior a distância no Consórcio UAB-CEDERJ (UFF). Tem sete livros de poesia, sendo o mais recente “O pássaro solitário” (Penalux, 2020). Tem poemas vertidos para vários idiomas.

 

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