Editorial

(Um) Dia de Cinzas em Cabo Verde
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Nadir Faria

Nadir Faria

Cooperante

 

Saímos da Praia para Assomada. O dia tinha amanhecido com a cor acinzentada destes últimos, graças à poeira que veio do Sahara e que tem pairado por cá. Além do cinzento, sentia-se o seco das montanhas de Santiago pela falta de chuva…

Ao chegarmos encontrámos o caminho a ser calcetado – ainda, metade em terra, metade em paralelo. Diante da casa e diante da metade em paralelo, havia um terreno com vestígios de milheiros. O milho é um dos ingredientes fundamentais do dia-a-dia cabo-verdiano e do dia de hoje. Entrámos pela portinha e batemos à porta. Depois dos cumprimentos, foi hora de algumas das senhoras colocarem as suas batas de cozinha e começarem a preparar a comida tradicional do dia de “Cinzas” – o dia de início da Quaresma para os católicos.

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Começou-se como se deve começar: pelo cuscuz de milho, cozinhado a vapor num binde de barro, depois de a farinha ser humedecida e misturada com alguns flocos de batata e um pouco de açúcar. Ainda a fumegar, o cuscuz foi servido com leite e mel para uns e com manteiga para outros. Estômago já bem reconfortado, as mesmas senhoras das batas iniciaram a preparação do almoço: trutchida com ovos, peixe seco, xerém e vários vegetais cozidos – entre os quais reina a couve.

A celebração do dia de Cinzas acontece nas ilhas de Santiago e do Maio e remonta à época da colonização portuguesa. Nesse dia, os portugueses católicos eram “obrigados” a dispensar a carne. Eram, também, “obrigados” a atos de caridade e, por isso, partilhavam uma parte da sua refeição com os seus escravos.

Apesar de este dia marcar o início do período de jejum e abstinência, apesar das recomendações de um senhor padre na rádio – ouvidas durante a viagem – para não se comer demasiado, foi (é) um dia muito farto e foi impossível não comer muito. Seguindo o início da tradição e outra das recomendações do senhor padre na rádio, deve partilhar-se a refeição com os que chegam de fora ou com os que estão sozinhos. Essa parte foi perfeitamente cumprida. Chegámos oito pessoas de fora. Foram chegando e saindo vizinhos.

Houve comida para todos. Houve vizinhos que trouxeram comida.

Houve tempo para se lavar a louça e para perguntar sobre as novidades das famílias de quem passou. Houve tempo para café de cafeteira. Houve tempo para fazer “marmitas” para quem se deslocou da Praia. Houve tempo para partilhar. Houve tempo para estar.

Comentou-se que a comida em dia de Cinzas é tão boa que deveria repetir-se este dia, pelo menos, umas três vezes no ano. Não terá sido um comentário muito “católico” mas é difícil discordar dele… pela comida e por tudo o que a envolveu!

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