Passeios democráticos

Vivia-se o tempo em que os portugueses, e não só, não tinham despertado para o turismo no seu país, ou no estrangeiro, muito menos o direito de terem férias pagas.

Eram tempos cinzentos, aqueles que se viviam no findar o consulado salazarista. Mas eram felizes. Parece uma contradição, mas não é. Por outro lado, o turismo, não tinha a importância e o peso na economia, nem a nível mundial, que depois veio a ter.

Assim, os passeios de camioneta de excursão foi o meio que permitiu conhecer um pouco do país, no mínimo, uns pedacitos do mesmo.

Eram passeios democráticos. Ali tanto viajava o rico proprietário rural como as classes mais pobres. No interior do autocarro ocorria um nivelamento social e uma aproximação invulgar. Cada um ia com os seus interesses pessoais e profissionais, não era apenas o passeio pelo passeio. Ninguém por esse tempo vivia exclusivamente da profissão. Todos a complementavam com a lavoura, a pesca, ou o contrabando. A grande maioria apreciava as feiras do gado e tudo o que está associado à lavoura.

Uma ida anual, à Peneda, às Feiras Novas, à Feira dos Santos a Cerdal, ou à feira das Colheitas a Vila Nova de Famalicão, entre outros, (?) pressupunha um evento maravilhoso de que falavam durante muito tempo, porque, para uma grande maioria, o seu horizonte se circunscrevia ao Concelho de Cerveira, e só em dias de feira.

O dinheiro era muito escasso, e ir de passeio, constituía, para muitos, um pequeno rombo na economia doméstica a ter em consideração.

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Desta feita, o passeio foi a Romaria de Nossa Senhora da Peneda.

A camioneta parou, como todas, em Chão de Lamas, porque a estrada também acabava ali. O resto do caminho até chegar ao santuário, era feito a pé.

Aqui chegados, era estendida uma manta de farrapos, por mãos hábeis de mulher, sobre um chão verde, debaixo das frondosas árvores que a todos protegia do sol forte de início de Setembro. Servia para as pessoas se acomodarem e não sujarem a roupa domingueira, para muitos a melhor, e a única, que tinham, e fazer a primeira refeição a sério.

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“Oh Viriato, senta-te aqui e comeis connosco”. E desta forma aleatória se iam acomodando e juntado sobre a manta as pessoas que, durante um ano, pouco se viam.

Sobre esta, eram dispostas, ainda, toalhas imaculadas onde cada um depositava o farnel com os alimentos que, em casa, confeccionaram para todo o dia.

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Alimentos como, o coelho estufado, ou galo, presunto, chouriço e bolinhos de bacalhau, regados com tinto ou branco. Todos os alimentos eram por eles criados, uma delícia. Comer assim, era uma rara excepção. E depois havia uma troca de alimentos entre os comensais.

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“Anda Viriatinho, senta-te homem e come, dizia a sua esposa”. Mas o Viriato estava pensativo. Os demais comensais incentivavam-no até que, às tantas, ele saiu do mutismo e desembuchou.

“Pois é, está tudo muito bonito, mas o problema é o portão, pois, pois. Esse é que é um problema, nunca mais conseguimos ter um novo”.

 “Deixa lá homem que tudo se vai resolver, haja saúde que a senhora da Peneda vai-nos ajudar”. Respondeu a mulher, para quem o passeio era destinado a pagar uma promessa, antiga, à santa.” Agora senta-te e come”.

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Para os restantes, aquela conversa enigmática pouco lhes dizia, porém a mulher do Viriato fez questão de os elucidar.

“Há anos que estamos a fazer um mealheiro para mandar fazer um portão em ferro que custa dois contos de reis, para o lado da estrada. O que lá está já nem um prego aguenta”.

“ Para virmos a este passeio tivemos que “roubar” o suficiente para o bilhete da camioneta e para algumas despesas na romaria. A pescaria, este ano, foi fraca e não conseguimos amealhar nada de jeito. Vamos ver como corre o S. Miguel”.

A pesca no Rio Minho, não sendo a principal actividade de muitos, porque dominante, era a lavoura, era um suplemento, árduo, muito bem-vindo, para aqueles que, como o Viriato, viviam numa freguesia ribeirinha. E do contrabando, ali, não se falava, como é evidente.w

Depois de bem comidos e bebidos, com os corpos robustecidos, caminhavam, felizes, uns quilómetros rumo ao santuário. Deveres religiosos cumpridos, em primeiro lugar, cá fora esperava-os a grande diversão de concertinas e cantadores ao desafio. À hora marcada, voltavam a pé à Chão de lamas e dali a casa.

* O autor não segue o acordo ortográfico de 1990

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