Crónicas de uma Guerra em África: Jogo de andebol para esquecer!

José Leal

Professor de Educação Física e Desporto

 

O AB7, iniciais do Aeródromo-Base 7, situado no Distrito de Tete, no norte de Moçambique, era uma unidade da Força Aérea com cerca de 1000 militares de várias especialidades.

Tinha esquadrilhas de aviões ligeiros Dornier 27, vulgo DO’S, para abastecimento, transporte e evacuação de feridos, uma esquadrilha de T6, aviões de ataque ao solo, com bombas de fragmentação e “napalm”, isso mesmo, napalm, iguais às usadas pelos marines americanos no Vietnam, que os nossos governantes diziam não utilizar, mas que eram o “pão nosso” de cada dia para os guerrilheiros da Frelimo e populações suspeitas.

Além destes aviões, havia também uma esquadrilha de Fiat’s 91, avião a jacto de ataque ao solo e outra de helicópteros, Allouette 3 e Puma.

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Dornier – vulgo DO 27

O AB7 ficava situado do outro lado da cidade de Tete, separado pelo Rio Zambeze, com uma distância entre margens de cerca de 1 km. 

Do outro lado do rio ficava o Matundo e 10 quilómetros adiante, que se podia percorrer em estrada alcatroada (um oásis), o Chingódzi, povoação onde o AB7 estava instalado. Cinco quilómetros mais à frente ficava a vila de Moatize, que além de ser a estação de caminho de ferro que dava ligação à Beira, era uma das minas de carvão mais importante de África.

Moatize tinha muito movimento. Estavam aí sediadas companhias do Exército e talvez por causa disso, tinha cinema, piscina, restaurantes, campos de futebol e muita gente nova, filhos dos trabalhadores das minas. O pessoal da “Base”, assim eram conhecidos os militares da Força Aérea, passava aí muito do seu pouco tempo livre.       

       Monomotor Auster

À noite e ao domingo, a guerra parava para quem não estava de serviço, sendo alturas propícias para “desopilar” um pouco, praticando desporto.

No ano de 1972, o AB7 conseguiu juntar entre os seus homens, excelentes jogadores de andebol, oriundos das melhores equipas de andebol do continente, como o FC do Porto, Belenenses e Beira-Mar. Fazíamos parte de uma equipa onde estavam também o Pascoal, o Correia, o Santos Jorge e outros cujo nome já se vai esvaindo no tempo.

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Era a melhor equipa de andebol de Moçambique, sem qualquer dúvida.

Os domingos à tarde – “ o que é que você vai fazer domingo à tarde?”   https://www.youtube.com/watch?v=55YO3BIZWVs cantava Parafuso  nas rádios, eram por vezes o ponto de encontro das equipas do Exército, Marinha e Força Aérea, para jogar andebol.

Íamos todos almoçar a Moatize, num daqueles restaurantes ao ar livre com as mesas de madeira debaixo das ramadas, onde a ementa podia ser um frango à cafreal ou uma caldeirada de cabrito, regados com cerveja ou com os metropolitanos vinhos do Dão, Gatão, Lagosta ou Casal Garcia, aperitivo à maneira para os jogos de andebol.

Num certo dia de Novembro, o calor era muito como de costume, se vos disser que a temperatura rondava os 50º C só estarei a errar por defeito, o rinque de cimento estava cheio para ver mais uma jogatana. Eram as meninas brancas que tentavam catrapiscar um namorado metropolitano e os pretitos que não perdiam um jogo, deliciando-se com as jogadas mirabolantes que o pessoal “elaborava” propositadamente e os fazia delirar – aqueles remates de costas eram o máximo, não eram Zé Leal?

Nesse dia o adversário era o Exército e o jogo ia ser renhido, dada a rivalidade que aumentava progressivamente com o desenrolar dos jogos. Todos queriam ganhar à Força Aérea, mas ninguém o tinha conseguido e ainda não era desta vez que queríamos dar esse prazer ao adversário. Por isso, todos os elementos tinham de estar disponíveis para poder preservar o prestígio dos maiores.

Já lá estavam quase todos e digo quase todos porque faltava o Serafim.

O Serafim, era um jovem Alferes Miliciano, piloto de helicópteros da nossa idade, com 21 anos. Naquele dia na Base o trabalho foi muito e duro. Várias evacuações de feridos de “zero horas” – sinal de urgência máxima, significando que algures numa zona do mato, alguém lutava desesperadamente com a morte e portanto todos os segundos eram importantes para a sua sobrevivência. Havia sempre pilotos de serviço permanente, mas como nesse dia não chegavam para as “encomendas”, o Serafim apesar de não estar de serviço, teve de “alinhar”. Às 5 da tarde o jogo começou sem o nosso homem e com este a decorrer já há cerca de 10 minutos, um “zingarelho” – o nome “carinhoso” como era tratado o helicóptero, sobrevoa o campo em voo baixo. Ficou-se logo a saber que era o Serafim que já tinha chegado e ainda podíamos contar com ele.

Entretanto para espanto de todos, o jogo chegou ao fim e do Serafim nada.

Como era previsível, mais uma vitória para os “aviadores”. Quando todos se preparavam para um banho retemperador e enfiar umas “bazucas” no “bucho” (era assim que chamávamos às cervejas de 1 litro), chega a notícia em que ninguém queria acreditar e que transformou uma saborosa vitória no campo, na que foi sem dúvida a pior derrota sofrida na nossa carreira de desportista. O Serafim “lerpou” – e lerpar, na nossa gíria, queria dizer isso mesmo que estão a pensar – morreu.

O que é que se passou então? O Serafim fez a evacuação, deixou os feridos no hospital, passou por cima de nós a avisar que vinha jogar e logo ali, entre o campo e a Base, caiu. Porquê, nunca se chegou a saber ao certo. Sabemos que o helicóptero caiu, explodiu com o embate no solo e o nosso amigo transformou-se de repente num archote. A queda foi vista pela torre de controle, a distância à Base era pouca e apesar dos nossos bombeiros terem demorado muito pouco tempo a chegar, já nada havia a fazer.

 

Uma grande equipa de andebol. O primeiro de pé, a contar da esquerda é o Vítor, falecido mais tarde.

Não voltamos a jogar andebol tão cedo.

Regressamos num jogo com os Fuzileiros, em Tete, e o Serafim lá estava em espírito, fazendo parte do “sete” inicial.

geral@minhodigital.pt
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