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“Este encontro vai ser uma festa” – afirma Mia Couto ao MD sobre participação na primeira edição do Fliparacatu no Brasil

O escritor moçambicano Mia Couto é um dos autores homenageados da primeira edição do Festival Literário de Paracatu (Fliparacatu), que decorre no Centro Histórico de Paracatu, um município no estado brasileiro de Minas Gerais, entre os dias 23 e 27 de agosto.

Com todas as atividades gratuitas, o Festival homenageia também outros grandes nomes da literatura nacional e internacional, como Conceição Evaristo, linguista e escritora afro-brasileira. O Patrono é Afonso Arinos (1868-1916), nascido em Paracatu. O tema central recai sobre a “Arte, Literatura e Ancestralidade”. A curadoria é partilhada entre Tom Farias, Sérgio Abranches e Afonso Borges.

A participação do escritor moçambicano aconteceu dia 25 de agosto, pelas 21h15, horário local, uma participação conjunta com Itamar Vieira Junior, escritor brasileiro ganhador do Prémio Jabuti 2020. Em pauta esteve o tema “Palavras para desentortar arados”, nas instalações do Centro Pastoral São Benedito.

Com um histórico literário irreparável e tendo conquistado renome internacional ao defender a língua portuguesa, Mia Couto é um dos grandes destaques desta edição de estreia do Fliparacatu. Para perceber o impacto do Festival no roteiro literário do autor, conversámos com Mia Couto, pseudónimo de António Emílio Leite Couto, detentor de diversos prémios literários, como o Prémio Camões 2013 e o Prémio Neustadt, tido como o Nobel Americano.

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Qual o papel da literatura de ficção em tempos tão urgentes?

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

Eu acho que o papel da literatura – se é que a literatura tem, exatamente, um papel – é, neste tempo, com tanta dor e tanta urgência, realmente incentivar a leitura de um outro mundo. Este mundo que se diz mundo real tem outras dimensões que possibilitam e encorajam que a gente sonhe e pense que um outro mundo é possível. Outras realidades estão dentro de nós e podem nos ajudar a conduzir a um mundo melhor.

Penso que o mundo hoje está dividido entre incertezas e o inesperado. Quando toma a decisão de começar um texto, qual o parâmetro que você adota ao sentir este mundo?

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Eu não sei exatamente quando é que um texto começa dentro de mim.  Provavelmente, há alguma coisa, algum percalço, algum caso – que vocês em Minas Gerais chamam “causo” – que acende em mim. Essa personagem ou esse vento, que já estavam dentro de mim, simplesmente despertaram, acordaram. Depois, quando essa personagem que tomou posse de mim já tem uma decisão a tomar, ela conduz o resto da história.

O que tem pensado sobre a distância que divide Brasil e África? Qual a temperatura do mar, as suas ondas e arrebentações? E como a língua interfere nisso?

Há várias Áfricas, como a gente sabe. Isso é um resgate que nós próprios africanos temos que fazer, temos que afirmar como é pungente essa diversidade – uma grande riqueza desse continente. Entre Brasil e África existem proximidades que parece que não podemos apagar. Temos que fazer esses alinhamentos, que passam por ações do governo e também pelo nível privado, que são pontes que nos fariam tornar mais próximos. Uma das coisas que eu saúdo muito é o movimento editorial, o movimento dos festivais, como esse do Fliparacatu, que, ao convidar escritores africanos, principalmente da África da língua portuguesa, torna mais visível essa nossa familiaridade.

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Pensando a humanidade, qual é a atual reflexão que você faz sobre os efeitos da pandemia de Covid? As pessoas aprenderam alguma coisa? Ou nada mudou?

Eu acho que nós vamos esquecer rapidamente aquilo que a covid-19 provocou como uma espécie de desestruturação completa do nosso lugar na vida, no planeta, na sociedade. Tal e qual como esquecemos aquilo que aconteceu em 1918: a gripe espanhola, que matou mais gente do que covid-19, mas aconteceu como se tivesse acontecido da primeira vez. Então, infelizmente, aquilo que nos faria repensar o nosso lugar como centro do mundo, como donos e administradores do planeta, vai ser esquecido, assim como o papel importante dos serviços públicos de saúde, da prevenção, da existência de uma organização que possa, de maneira central, gerir uma calamidade como essa. Acho que não vamos aprender essa lição e infelizmente, vamos esquecê-la.

No seu novo livro, você fala dos males da humanidade. Focando apenas na natureza, temos saída? E se temos, o que cabe à arte?

É preciso repensar o nosso lugar naquilo que a gente chama de natureza. E é preciso, antes de mudar políticas e economias, que são coisas centrais porque a ecologia também apela para mudanças naquilo que é sua própria estrutura, nos modelos de fazer política, de fazer economia, pensar que é preciso questionar o nosso próprio pensamento. Como nós nos vitimizamos como proprietários do planeta? Como nós pensamos que tal como estragamos com a mesma arrogância, agora vamos salvar o planeta? O planeta não precisa de nós para se salvar, ele vai se salvar sozinho. Esse deslocamento, esse descentramento do lugar da humanidade, da nossa espécie, tem que ser assumido de uma maneira radical.

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Você se considera otimista ou pessimista com relação ao futuro da humanidade?

Eu sou um pessimista com esperança também, e eu acho que temos que ter muito cuidado em relação à maneira como nós tentamos tantas vezes mudar o mundo. Nós nos declaramos pessimistas em relação à possibilidade dessa mudança, e essa declaração pública de atirar a toalha ao chão dá força à extrema direita e não encoraja muito as novas gerações a tomarem nas suas mãos aquilo que elas podem fazer. Nós, dos países africanos, costumamos dizer que a desesperança e o pessimismo são o luxo do rico, então, nós temos que manter essa convicção de que é possível mudar. Estamos perdidos, mas estar perdido pode não ser mau: pode ser uma maneira de a gente pensar que tem que encontrar um caminho que é mais fundo do que se pensava.

Mia, e quanto às pessoas, quanto ao ser humano, neste mundo que virou o segundo século com tantas guerras? Existe um campo imaginário ou concreto onde a literatura e a arte podem colaborar? Ou não tem solução?

As guerras sempre existiram, mas se tornam quase invisíveis quando acontecem longe da Europa. Em Moçambique houve uma guerra há 16 anos, mas não impediu que nós tivéssemos uma resposta criativa. Eu escrevi “A Terra Sonâmbula” durante esse período terrível, absolutamente cruel, de uma guerra civil que fez um milhão de mortos e que levou metade da população a encontrar refúgio nos países vizinhos. Moçambique foi capaz de dar a volta por cima, criou paz. Essas guerras têm solução – elas têm que ter solução. Realmente precisamos conversar e criar uma grande frente em que não fiquemos distraídos, entretidos e divididos. A grande lição para aprender com essas guerras é nos tornarmos mais humanizados, mais próximos uns dos outros.

Fale um pouco sobre as suas expetativas para o primeiro Fliparacatu e a sua participação no festival como autor homenageado…

Este encontro vai ser uma festa. Eu fico muito contente de ser parte da equipa do Fliparacatu que vai inaugurar essa cidade como um espaço de partilha de cultura e literatura. O mais importante, nesse convívio que temos entre nós escritores e as demais pessoas, é que passemos a ideia de que a leitura não é exatamente uma obrigação, mas é um enorme prazer.

Para finalizar, o escritor mineiro é conhecido por ser contista. Finalmente, portanto, com o livro “As Pequenas Doenças da Humanidade” você se tornou mineiro?

Todos os brasileiros me dizem que, se eu fosse brasileiro, eu seria mineiro, porque nunca respondo diretamente as perguntas que me são feitas. Se o Brasil me naturalizar, eu adoto mesmo essa naturalidade do mineiro brasileiro.

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