MEMÓRIA ALEGRE II – DA CINTA P’A BAIXO…

Albino Kilombo

Operário em Construção

O último ano foi ruim, muito ruim, que a chuva faltou aos campos, cainha a dessedentar homens e animais.

Para suprir a apoucada rega, que desmedra o milho pelo tempo que mais sede sofre, decidiu-se a mandar abrir poço no campo d’Agrela, a grande propriedade dominando no horizonte, pegada ao fundo do lugarejo que rodeia a grande casa agrícola, que um socalco murado separa.

 

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

 

Se passou anos a fio manietado pelo receio de que um novo furo aquífero roube a fecunda veia que alimenta o poço caseiro de serventia, abundante de água fresca e cristalina como afiança outra não haver em toda a freguesia ? gabarolice que não lhe perdoam outros lisonjeadores do que é seu, tão ou mais convencidos do que ele ? o verão passado, sovina de chuva, desfez a perrice que o achacava.

Mourejavam já homens no campo, pelo que mal raiou o dia desceu à cozinha, a emborcar a malga grande do grosso pão de milho afogado em café, a que acrescentava pinga de leite ordenhado e colheres largas de açúcar amarelo.

Olhou pela frincha da janela de guilhotina que abria para o terreiro, e pensou que o dia ia para o quente, que os mineiros que abriam o poço tinham muito que suar na treita mais alta do terreno, onde o Firo Poças, na semana passada, de poda entre as mãos trémulas, num arco tenso posta à altura da cara avermelhada, marcou o local do furo: no preciso ponto onde a vara estorceu, asseveradora, como ele a pés juntos, de correr ali grande rio subterrâneo.

A localização vem a convir, nem a pedido seria melhor, na extrema mais elevada do campo, a permitir que furo feito, a água, subida a força de pulso no sarilho para as pequenas regas, ou a motor como intenta para as grandes ?modernice técnica que traz debaixo de olho, tanto que já falou com o Esteves eletricista, que há-de fazer a baixada de casa até ao sítio ? se espraie leira abaixo, encaminhada pelas guias formadas das fileiras do milheiral.

 

Envaidece-o olhar as vistas, o esforço dos homens que labutam, o grupo de mulheres que ao fundo na eira espanejam milho; recorda o mariolas do Firo, pescador de águas, mestre único no engenho de cheirar rios que correm nas profundas, arte ancestral que ?dizem ? o abuso da aguardente apura.

Não é que o raio do pingas recusou companhia no trabalho de farejar a terra! Colheu da latada a poda viçosa que lhe convinha, a golpes reteúdos de navalha capou-a de folhas e olhos-ladrão; experimentou-lhe a elasticidade com flagelar as perneiras a vergastadas; arqueou-a entre as mãos tremelicantes da alcoolemia, e foi-se borda fora a furoar fonte.

Viu como ele desistia do primeiro ponto, marcado a haste de oliveira espetada na sequiosa terra, na banda mais baixa do campo, onde primeiro a vara descaiu em arco; admirou-se como montava à zona alta, e a meio pareceu seguro da nova mensagem que as águas escondidas comunicavam; como cravou a nova haste de marcação e logo a pontapeou, desprezador do recado.

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Abismou-se quando ele chegou à parte alta, o local mais improvável de quantos se metiam a opinar, e como ali se deu por satisfeito, de sorriso aberto ao diálogo que o álcool, a destilar pelo bafo, travava com as águas fundas, numa linguagem surda de que só a terra conhece o sentido.

Parece que o está mesmo a ver a acenar-lhe com o chapéu esburacado e seboso, a pedir que meta pés a caminho; como quando chega ao ponto de onde ele não arredou pé, e de chofre lhe afiança ser ali o prumo, o caminho vertical para o veio, «dos mais ricos que marquei, homem!».

 

? Tens a certeza, Firo? Não será este o veio da casa? Aqui tão perto… ?  duvidoso. ? Já por aqui andaram marcadores que dele fugiram… Olha que um rouba o outro… ? a querer impor ao descobridor de fontes a sua cegueira de saber, que é o que mais há.

? P’ra que porra me chamaste? ? tocado o esquadrinhador no seu brio ? Se são os peralvilhos que cá trouxeste antes de mim os certos… passa bem, nada me deves ? a tanger as botas com a vara no arremedo de andar d’ali para fora.

— Não é isso, moço — segurando-o pelo braço. — Sei bem que nunca se ficou mal contigo… mas não fica muito próximo? —  numa intimidade de compadres, a encapotar a manha dos indecisos. — Olha que abrir o poço e depois fechar… custa uma nota preta…

— Podes ficar descansado; a veia é outra  ?atalhando-lhe a insegurança, numa certeza que desarmava. — E fica a saber: como esta, poucas ou nenhuma na redondeza de dez freguesias. Eu t’agaranto.

 

Assente ficou que ali seria, e homem que volta atrás com palavra dada não era. Fosse como fosse, sempre podia mandar fechar o buraco se viesse a roubar água ao veio que alimenta o poço da casa. Seria dinheiro botado à rua, é certo, mas o receio de vindouros anos secos e ásperos como os que houveram, a levantarem clamores e fome pelos casais, derrotou o sovina amor aos cobres, amortalhados na segurança esconsa da arca da roupa branca.

Era ainda cedo para a pinga, pensou, mas o alvorecer solevou a neblina abaixada pela noite e destapou um sol picado de ardência; os homens hão de ter sede, que o serviço puxa.

Desceu à frescura desalumiada da adega, e o dar uma canelada num cepo lhe lembrou a necessidade de desofuscar o sítio a luz elétrica. Sacou o espichel, deixou correr o vinho frutado até ao esbordar da caneca. Enquanto ocupava um olho com vigiar a porta, não fosse a mulher aparecer; com o outro seguia o encher da malga que dormia voltada de bojo sobre a pipa, à espera do uso basto que lhe dava.

Saiu ao terreiro, direito ao campo, ocupado a enxotar o perdigueiro que lhe farejava as calças a que alimpou as mãos de retalhar o chouriço ? é que vinho sem conduto… aziúma.

Na ponta do lugar ? no refego do terreno onde a mulher teima com o plantio de couves, repolhos, alfaces, cenouras, nabos ? vedado dos animais por fileira cerrada de canas de foguetes, que caem às centenas no lugar pela festa da padroeira da freguesia, o rancho de jornaleiras habituais da casa catam nos feijões, numa alegria de cantigas de versos maliciosos com que alfinetam os homens de trabalho perto no poço. A língua afiada abafa o tinir das picaretas, e os homens, derrotados pela brejeirice das modinhas, há muito que as mandaram à fava e outros lugares que não fica bem aqui dizer.

 

— Bom dia, sô Zé! — espicaçou-o, em tom mais elevado que as demais, uma das raparigas, a Zira do Freitas ? quem havia de ser!; moça como outra não há: uma alma de frescura, de palavra fácil, graceja e espicaça, sem que desonestidades lhe inculquem; dona de um palminho de cara que é de um homem se benzer muitas vezes, um requebro d’ancas de fazer pecar santos; cobiçada dos rapazes e invejada das raparigas, quem a leve em dote sorte grande alcança;

— Bom dia, moça! Bom dia, moças! —– responde, a imitar-lhe o modo alegrote. — Já à janela me chegaram aromas da calice que por aqui vai… será medo das urtigas ou das picas? — provocador como de natural, apontando os homens do poço.

Retorquiu-lhe um coro de escusas castas, com a Zira destoando da melodia imaculada:

— Hui… desgraçadinhos! Se ponho eu mãos na pica, não temos ali homem que me ag’ante.

— De uma pica que eu cá sei, precisavas tu — regougou, entre a risota geral que a picardia levantou, um dos rapazes da borda do poço, aquele com quem o rancho fêmeo mais peguilha, por picado das provocações dos versos maliciosos das cantigas. Dizem que lhe foge os olhos e o coração para a Zira, e ela, matreira e a querer apurar verdades que o coração lhe pede, atiça-o.

 

Abeirou-se dos mineiros, a gozar a satisfação do homem do fundo, que se refrescava de água pelas rodilhas.

 

— Isto é que vai ser uma riqueza, sô José! Bate certo com o que apregoa o Poças…. tem água p’ra dar e vender.

— Isso é água remida… não tem que ver — a amansar a euforia, que mais vale ser precavido que dissipador de esperanças.

? Água remida nesta altura do ano?… Só pode estar a brincar. Este veio faz de um ribeiro rio — ripostou o especialista de içar as gamelas de terra, seguro da sua autoridade: a seca em Setembro traz fundas as águas desirmanadas de veio, e aquele golfão contínuo, que a cada palmo escavado borbulha e engrossa, é veia gorda pela certa, e, como ele jura, de fazer inveja a nascente de rio.

 

Foi-se achegando de mansinho, como quem não dá importância de maior ao achamento, a conter o entusiasmo dos homens, mas para consigo tomado de alegria pela decisão de abrir o furo. Decisão que por casa e roda de amigos todos desfaziam, por certos de erro crasso ? ali, no cabeço alto do terreno!, onde é que isto já se viu? ? advogando desgraças, das quais o dinheiro perdido era menor parte.

Por mor da inclinação do terreno e da macieza do solo, o poço abria-se em rampa até à altura de um homem posto de pé, após o que, cavando em terras mais duras, se aprumava. Da fundura se dirá que a cabeça do homem da pica deixara de se ver no vértice da rampa com o prumo do buraco, ainda de altura pouca para poço de rega.

De olho ávido no fundo líquido onde o homem da pica esbofava, outro no peito alvo da Zira, que largara o rancho e se inclinava despudorada na borda alta do furo… vai que vai disto:

no tempo que o diabo esfrega um olho, que dizem ser o mais pequeno instante que há, resvalou fundão abaixo, o rabo a deslizar na terra molhada, eivada de saibro. Valha que o homem do fundo se desviou a tempo, soldando-se à parede, desperto pelos gritos de aflição, e a aterragem se fez a pés juntos, na digna vertical em que caem homens como o senhor José.

Correram vozes a acudir à desgraça numa revoada estrídula, com os homens num instante sossegados, que ele, lá do fundo, sem perder a compostura, aprumado como um militar em parada, preste atalhou o espavento da queda com palavras de ordem dignas de profissional, a explicar ao assustado mineiro da pá e pica como havia de se argolar o poço, que a terra era macia e perigosa, exigia cuidados por acrescidos perigos em cada palmo que se fundeia.

Mais estirado que a palestra foi o serenar do mulherio, aflitas com o afundanço do sô Zé, zunzum a que ele não prestava a mínima atenção.

Içou-se o senhor, ajudado pelo apoio de corda, que de cima os rapazes, à uma, puxavam. E todos, numa atenção que excedia, queriam saber se estava bem, se se não se magoara, que coisa assim nunca se viu !, ir por ali abaixo e não sofrer mossa!

 

Reclamou os tamancos enterrados na lama, a sacudir os salpicos que beliscaram o casaco, na posse da dignidade e aprumo que se exigia; voltou-se muito prazenteiro para as raparigas, a serenar cuidados:

 

? Oh, moças! não teve p’rigo nenhum. Da cinta p’a cima, esparrinhou; da cinta p’a baixo, ficou o bengalim a boiar na água.

 

Velho tolo! velho tolo!, escarcéu geral das moças, que deviam estar escarmentadas: não havia domingo, quando regressavam em bando alegre da missa dominical, e ele passava na caleche puxada pela mula cega, que não parasse, as mandasse subir, e, malicioso, não abria a portinhola à borda do estribo, justificando:

? Botai a perna po’ riba p’a apanhar ar nela.

 

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