MEMÓRIA ALEGRE VII : Chica buena

Albino Kilombo

Operário em Construção

Chovesse o que chovesse ?Nosso Senhor dá por bem o que tantas vezes parece mal, repetiam amiúde o senhor abade e o povo ?na hora aprazada, se não era de todo possível a procissão por mor do dilúvio que não dá tréguas, haveria missa no terreiro da pequena capela; chovesse o que chovesse.

 

          O João Tamanquinhas, tão hábil a fazer socos e gamelas de um tronco de árvore como a deitar remendos nas vigas das casas carcomidas do fumo e da traça, prometeu, pelas alminhas dos que lá tem, construir pálio robusto, coberto a chapa de zinco, que proteja o missal sagrado, as alfaias do culto, a voz do padre encomendado para o sermão, a imagem da Virgem que há de sair a porta a abençoar almas; e vai a obra adiantada, que promessas são juras a Deus!

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

          Chovesse o que chovesse, impelidos pelo seu terno e estuado amor à Mãe de Jesus, o povo lá estaria: uns, protegidos da inclemência molhada nos largos e robustos guarda-chuva de pano grosso; outros, mais sagazes e menos importados com a indumentária, de saco de plástico da ração dos animais como túnica, a que abriam dois buracos laterais para os braços, um ao centro para enfiar a cabeça resguardada nos chapéus e nos lenços; todos de galochas, que até os caminhos empedrados são lamaçais.

          Haveria missa, pois então!, e no pequeno largo defronte da capelinha da Senhora dos Remédios, não caberia cisco, pleno de povoléu, fé e oração.

          Pela hora que nos relógio se marca o meio-dia, no céu amortalhado de escuro, baixo e pesado, principiou o sol a romper, ténue, tímido. Amainou a a chuva, fez-se puinha. As bagas, antes grossas e pesadas, fizeram-se lêndeas a cair dos cabelos que as bruxas penteavam.

          Clareou ao poente, num alvorecer a desoras; o monte, que fecha o vale da banda oposta ao mar lá longe, destapou a sua silhueta húmida e verde, num faiscar de pedra batida a cinzel; deu a claridade em crescer, no vagar em que S. Pedro, com as sete-chaves que traz guardadas no bolso e não dá a ninguém, ia fechando as torneiras do céu, a lucilar o dia !

          Como um milagre bíblico o dilúvio parou, a abóbada celeste esparramou-se de azul luminoso, ainda aqui e ali pintalgado de nuvem feia, escura, teimosa, que depressa a brisa leve levou, e um sol de Maio, sol de Deus, tocado da reverberação que se eleva da terra depois da chuvada, acendeu-se, e, qual gigante flor rúbea num campo de lilás, sorria !

          Um pé poisado num lado do monte, outro n’outro, a curva perfeita do Arco-Celeste ?como os mais velhos então chamavam ao arco-iris ? nas cores de que Deus está de bem connosco, nítida e feérica, a proteger o enxame de aldeias que tem no vale seu berço.

          E logo pelo pequeno lugar da aldeia correu incendiado frémito.

          A Luisinha ? flor mais radiante daquele recanto da freguesia, de quem a beleza fazia juz à frescura da voz, ao riso, ao brilho esmaltado dos dentes a sorrirem entre o purpurino dos lábios, ao longo e brilhante cabelo negro que se derramava em cascata, à cumplicidade harmoniosa que repartia com todos ?bastou-lhe olhar o céu que se abria, ouvir o incentivo da avó, «vai, vai… põe-te a mexer… estás á espera que seja noite?…» para deitar pés ao caminho, a falar de porta em porta por todo o lugar: ainda iam a tempo de dar um jeito no largo, fazer um pequeno tapete de flores entre a porta da capelinha e a estrada empedrada que leva à igreja na parte alta da freguesia. Ainda iam a tempo, era só meterem mãos à obra  ? convencia todos.

          Vamos ! vamos ! onde todos ajudam nada custa ! é uma bênção de Deus esta bonança ! ? emoções singulares, ingénuas e puras, a tanger corações simples.

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          Ajuntaram-se no largo, sem faltar alma ao chamamento.

          Como mais vale um bom mandador que um fraco trabalhador, logo o Ti’ Manel Sezões, homem mandão, que nos ajuntamentos não permitia  o ministério de mandante a outrem, assumiu a regência da banda, que dirigia com a batuta da voz autoritária. Decidiu, sem consultar ninguém, rapar-se a lama do terreiro, remover as pedras arrastadas na enxurrada, tapar buracos, esgalhar até ao tronco a tília grande que caíra e barrava acesso limpo a quem viesse da banda do rio, pelo que distribuiu machados pelos homens, enxadas e gadanhas pelas mulheres e criançada; mandou tirar a junta de bois da corte para arrastar o tronco, que se havia de doar à fabriqueira para arrematação em benefício das obras de retelhar a igreja; gritou ordens, ouviu respostas provocadoras, mas até o senhor Artur, o mais focinhudo homem do lugar, que nunca se prestava a nada, entrou na roda ? quem o visse, de calças arregaçadas e de enxada na mão entregue ao trabalho, não acreditaria.

          Da residência paroquial desceu a confirmar a nova a criada do senhor abade, que mal soube do denodo da gente do sítio em gloriar a Senhora teve o seu instante de recompensa, o seu momento de orgulho ?pecado de que se penitenciou rezando duas Avé-Marias.

          Fazer em poucas horas o que se faz no vagar de uma semana exige esforço, abnegação, e a gente do lugar não se fez rogada ? até a janta ficava por fazer. Mas barriga vazia não puxa carroça, e de pronto o tio Manuel Sezões de pôr a mulher a fazer a ronda com o garrafão da água-pé. Da casa da Ti’Maria Espreita desceu um gigo de broa fresca, que cozera nessa manhã, acrescida de pão trigo da padaria dos Remelgados, que roubaram horas ao sono diurno para ajudar na lide. Ao pão, que o Ti’Manel tratou que fosse a Luizinha a distribuir por ser trabalho leve, acresceram bolas de queijo, marmelada de caixa, chouriças arrancadas ao esconso das arcas, barras do duro e saboroso chocolate A Vianense.

          Não tinham tempo a perder com amanhar a ceia; com o conduto do cesto se saciariam e, quanto à sede, «é mamar do garrafão» ?gritava-lhes o mandante em voz de regedor azedo, iluminado da exaltação religiosa dos fregueses; homem pouco misseiro, é verdade, áspero e desdenhoso de beatices, mas que nesse dia, tomado do ardor da fé, incendiava.

          Pelos homens que puxavam de machado para decepar a tília, fez girar a garrafa da água-ardente, retempero que algumas mulheres aproveitaram, caso a Berta do Remelgado, que só queria molhar o bico, e se desculpou da larga golada com o catarro na garganta: maleita das noites quentes ao brasedo e fuligem do forno, que cedo a dizimou.

          Por ao tempo andar o Custódio da Briteira ? dito o Galego desde que dera de frosques com a sécia rapariga da Galiza que andava no séquito do Circo da D. Arlete, vai para dez anos ? a palmilhar casa a casa a rever conterrâneos, após a ausência pela raia sem dizer tús nem mús, ninguém se admirou que aparecesse. Quis ele meter mãos aos cestos das flores e dos verdes, mas foi despachado para junto dos homens: quedasse-se por lá na roda, tinham muito quem embaraçasse no rancho florista, disse-lhe a Luisinha com um sorriso, afadigada em dar beleza às poucas flores que puderam recolher depois de tão longo período de chuva, e os verdes que abundavam.

          Ao portal do Artur juntavam-se os que tinham arrumado alfaias, a debicar os restos do cesto e do garrafão do verdasco de enganar a ceia. O galego, que não despegou olho da frescura jovial da Luisinha, não se conteve sem se dirigir à avó da moça, a Ti’ Maria Espreita, carregando o acento trazido da Galiza, que obliterara o seu bom português:

          ?Tia Maria, chica buena ! ? a piscar um olho, enquanto o rosto apontava na direcção da cachopa.

          A velha, que azedava por nada e tudo que não fossem elogios rasgados à neta, e para quem chicas eram as porcas da pocilga, reagiu:

          ?T’as a chamar porca à minha neta?

          O galego, que não compreendeu, continuando:

          ?A chica cúantos años tien?

          ? Quantos anhos ? ?num grito que assustou muros grossos. ?Eu nem cabritos nem anhos, muito menos porcos, meu cabrão, que te chuço ? a pegar da forquilha com que acantonara folhas.

          O Ti’Manel, que á primeira diatribe do galego lambisgão ficou quedo por mal compreendida, à atordoada seguinte, como mola tensa que se liberta, alargou o passo, a encurtar distância para o mariola.

          Correu a Luisinha, que tudo percebera, a interpor-se ante o atónito Custódio da Briteira, dito galego, que não achava explicação para tão acesso furor contra a sua ingénua malícia, e a Ti’Maria, que de forquilha na mão era uma aljubarrota de estentor; o Ti’Manel Sezões, isentado de arma por seguro de ser ainda senhor d’um murro capaz de derrubar boi pelo cachaço, já alçava a mão.

          No espaço de se achegarem vizinhos, que largaram canecas e garrafão, as flores, os verdes, as ripas com que desenhavam motivos, já todos se riam às escâncaras: a Luisinha bem soube preste explicar que ele, o galego, não dissera de si porca, nem anhos: era chica buena, pois era!, concordavam todos, de garridos dezoito anos, que outros mais belos não havia na aldeia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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