Pedaços de vida

Amigos:

Conheço um homem de bem, um homem piedoso, um ser bem formado, que sabe ser amigo do seu amigo e preocupar-se com o seu semelhante. 

É português como eu, de carácter forjado na encantadora ma rude região beirã , de Portugal, onde ainda hoje habita. Já aposentado, Virgilio Roque cultiva o gosto pela escrita e pela leitura, usando as modernas ferramentas disponiveis na internet, a que já se habituou .  Do  seu  tempo disponível, utiliza boa parte ao serviço dos mais  humildes e necessitados,  participando,  amiúde e empenhadamente, em obras de natureza social e humanista.

Habituámo-nos a trocar correspondência, onde bastas vezes Virgilio Roque me confessa ser meu leitor atento, o que me desvanece, naturalmente.

Acontece que este meu notável conterrâneo – não obstante a sua exponencial modéstia – é um extraordinário contista, um homem que já mostrou ter uma impressionante e inesgotável memória, onde armazena um sem número de histórias reais, factos e pedaços de vida que o marcaram ao longo da existência. Hoje decidi, com a sua anuência, trazer a público uma dessas histórias escritas pelo seu punho. Gostava que a lessem e apreciassem, tal como eu a apreciei e até me emocionei com ela, como quase sempre me acontece com os seus textos de prosa  simples e despretensiosa, mas sempre cativante.

A história vem contida numa carta que ele me dirigiu, e dela me vou usar para que melhor entendam o pensamento de Virgilio Roque, que assim vos fica apresentado.

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

Eugénio de Sá

 

” Estimado AMIGO  EUGÉNIO DE SÁ

Ontem contou-me uma história lindíssima da  vossa “Pérola”,  Laurita. Me emocionei muito com essa história, pois passei por algumas situações bem parecidas e houve uma delas que me deixou marcas para o resto de toda a minha vida. Terei oportunidade de lhe falar dela quando estivermos caminhando lado a lado , sentados em volta de uma mesa, ou jogando uma partida de bilhar.

(Referindo-se ao falecimento da mãe de Luiz Poeta):

Este seu amigo diz algo, que pode estar muito errado, ao refererir: “infelizmente DEUS a levou hoje. Compreende-se que o diga, pois está tudo ainda muito fresco. E o amor que tinha pela mãe devia ser enorme.

Vou contar-lhe uma história verídica passada numa  aldeia do nosso querido Portugal;  “MIOMA”, fica  perto da vila do Satão, pertencente a Viseu. Foi a terra de meu Pai e de toda a minha família paterna. Vivi lá em algumas férias grandes e alguns fins de semana.

Lidei de perto com aquela amada gente e de alguns tenho muito boas recordações, tenho sofrido muito por causa deles pois aos poucos tenho-os visto partir como este seu amigo viu partir a mãe.

Havia nessa Aldeia um Senhor que tinha seis ou sete filhos, homens e mulheres. Era um humilde lavrador que tinha uma junta de vacas que na altura faziam o trabalho dele e de uma grande parte das pessoas da aldeia. Normalmente as pessoas quando dele necessitavam iam pedir-lhe se podia ir buscar-lhes uma lenha, com as suas vacas, aqui ou acolá. Bom, tinhamos que ouvir um comboio de berros, entre os quais o mais frequente era sempre: pois as minhas vacas são as putas do povo têm de estar sempre prontas, etc, etc. Porém, passados minutos, estava à porta das pessoas já com as vacas e, outra vez aos berros, gritava: então vocês pensam que tenho o dia todo?…  Todas as crianças gostavam de andar atrás dele e eu fui um deles (começo a ficar comovido com estas lembranças) pois tinha sempre rebuçados nos bolsos para dar aos meninos, como ele dizia.

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Um dia à noite estava eu numa taberna dessa aldeia a vendo jogar as cartas. Nisto passa o padre e ele levantou-se da mesa a correr, pegou num paralelo e atirou-lhe com ele, enquanto dizia:  ” O porco vai-te embora”.  Foram a correr buscá-lo outra vez para dentro da taberna e ele não disse a ninguém porque fez aquilo. Porém, passados dias, o dito padre fugiu com a empregada com quem viria a casar.

Outra vez, vindo de uma das feiras do Satão, apareceu em casa descalço e em ceroulas porque deu os sapatos e as calças a um pobre. Doutra vez, viu uma prostituta que andava na feira e pensou servir-se dela. Foi para o meio do mato quando a rapariga. Caminhava muito devagar e então falou-lhe: parece que ainda nem comeste, ao que ela afirmou, que nesse dia ainda não tinha comido nada. Quando a rapariga se deitou, viu que a roupa estava em péssimo estado. Mandou-a levantar e foi com ela comer numa tenda, e em seguida pediu à tendeira para ir com ela compra-lhe roupa e disse para a rapariga: olha, esquece o resto, veste-te e vê se mudas de vida.

Um certo dia, apanhou uma gripe e passados três ou quatro dias virou–se para a mulher e pediu-lhe que visse se juntava todos os filhos junto dele no dia (x).  Penso que deu um mês, sensivelmente. Já não me recordo com exactidão do tempo.  Ora, foi o cabo dos trabalhos,  pois  tinha filhos em França e Alemanha, e um estava no Brasil, e a este tinha-lhe morrido uma filha há pouco tempo. E ele, mesmo com a despesa do funeral da menina, la teve de vir a Portugal. Só por o pai estar com uma simples gripe em que o médico dizia que aquilo não era nada de grave e que bastavam uns dias e estaria fino. Era difícil de aceitar, porém o senhor seu pai não desistia.

Dessa forma, tiveram de vir todos e quando por fim chegou o dito dia, mandou que a todos se pusessem em volta da cama, de mãos dadas uns aos outros, e nisto virou-se pra o que tinha perdido a filha e perguntou-lhe: não vês nada? – Não, pai, respondeu-lhe o filho.  Ó meu cegueta; olha aqui a nossa menina que me vem buscar. Faltou o ar a todos os presentes. E o pai voltou-se para eles e disse-lhes: quero-vos sempre assim unidos. Depois virou-se para um que andava sempre em zaragatas e disse-lhe: sempre que algum sair deste rumo, chama-o à tua quinta dá-lhe umas lambadas nas trombas, e à noite tem de estar a jantar em tua casa. Nisto, pediu para que ninguém chorasse quando ele deixasse de falar e morresse, pois o que estava a ver era de uma beleza que não sabia explicar. Disse ainda que procurassem merecer o mesmo que ele. Em seguida pediu um beijo a cada um e logo que o último o beijou, morreu, a rir-se de felicidade.

Amigo, juro-lhe que me comovo sempre que lembro tudo isto, pois este HOMEM era muito meu amigo. Ainda hoje os filhos e netos me respeitam. Uma das filhas, que também já morreu, teve sempre a chave da casa de meus pais e depois a da minha.

Pode ser que a mãe deste seu amigo também possa estar ao pé desse meu Amigo.  Assim lho desejo.

Sabe; DEUS É AMOR. Temos de confiar n’Ele pois é o pai mais perfeito que existe.

Fraterno e Afectuoso abraço

Virgílio

 

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