O deputado

Paula Teixeira de Queiroz

 

Foi da província, como muitos, pisar a Casa da Democracia, o histórico Palácio de S. Bento, a Assembleia da República. Começou como todos, arrebanhado ainda na escola, depois a frequentar a sede partidária na vila, posteriormente a capital do distrito, bem palavroso e cheiroso, untuoso e maneirento, a esfregar as mãozinhas, a adoçar a voz. Cursou Direito em Coimbra – naquele tempo quem queria fazer carreira política ia para Direito -, e quando voltou, de canudo na mão, foi recebido como um herói na aldeia e muitas lágrimas de felicidade dos pais, que tiveram de vender uns campos para mandar o rapaz a estudos.

Mas ali estava ele, a luz dos seus olhos, bem-falante e emproado. Não havia quem lhe resistisse, as moças andavam num corrupio, mas ele não, que agora era doutor e o partido confiava nele, guardava-se para peixe graúdo, não para as moçoilas suadas e de faces coradas, suas conversadas de criança. A mãe dele avisou logo que quem se lhe dirigisse era “o senhor doutor”, nada de confianças, ainda se lembrava do cordão da sua santa mãezinha que teve de vender.

E subia a escadaria, orgulhoso, nenhum dos camaradas do partido chegaria tão longe, era deputado pelo círculo de Viana do Castelo, queria lá saber dos campónios da terra que lhe fizeram mil pedidos, que raio de pedinchas, queria lá saber se tinham electricidade ou acessos, o céu era o limite. Cada degrau da larga e imponente escadaria de S. Bento era uma chapada nas fuças lá da malta; Joaquim, sobe que sobe os degraus, saboreia cada um, que te levam à glória.

Entrou pela Arcada, direito à porta principal, com tanta Segurança que mais parecia estar num aeroporto. O primeiro-oficial de segurança, reconhecendo-o mandou-o passar sem lhe pedir qualquer identificação. O segundo, a mesma coisa. Cheio de verve e graça ia distribuindo “passou bens” ao pessoal menor, que se desfazia em mesuras. Desceu os degraus para o hall, cumprimentou os bustos dos ilustres parlamentares falecidos, fez uma vénia mais acentuada ao Sá Carneiro, e voltou a entrar pela porta de vidro que se abriu automaticamente como se ele fosse o Nero que chegava a Roma. Em surdina ouvia uma ovação merecida.

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Dirigiu-se aos Passos Perdidos onde fez uma pausa oportuna, respirou fundo e com satisfação, e depois avançou para a sala da 1ª Comissão que integrava, e onde se discutia o assédio no trabalho. Fez um brilhante discurso, nem precisou de consultar os apontamentos que a verve e a graça lhe fizeram jus, estava cada vez mais seguro e bem-falante.

Ao fim do dia, cansado, o cabelo desalinhado, a gravata à banda, o colarinho desapertado, voltou a fazer o percurso no sentido inverso, desceu os degraus, já fora do Palácio, e… ai, tropeçou e espalhou-se pela escadaria da glória que não o amparou nem lhe amorteceu a queda. Ao fundo da escadaria onde jazia imóvel, um fio de sangue a deslizar pelo calcário polido de muitos passos orgulhosos, as jovens guardas precipitam-se das guaritas e depois de lhe tomarem o pulso, olham-se, cúmplices, e fizeram um sorriso perverso enquanto enrolavam a corda fina que esticaram à sua passagem: nunca mais seriam assediadas e objecto de piropos ordinários no segredo das guaritas.

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