Policialmente – Assim vai a Justiça em Portugal!

Vitor Bandeira

Inspector-Chefe (aposentado) da Polícia Judiciária

O assunto foi já demasiadamente comentado, no entanto, este Acórdão da Relação do Porto, veio relançar o debate, sobre os preconceitos no sistema Judicial português.

Sempre que vem a público uma sentença que parece contrariar os princípios de igualdade e liberdade sexual das vítimas, é lembrado um caso que remonta a 1989, no qual o Supremo considerou que duas turistas sequestradas à saída de Almancil e que viriam a ser violadas por dois homens, tinham tido a sua quota-parte da culpa no que lhes aconteceu, por terem sido ingénuas e provocadoras. Dizia então o Acórdão “ Se é certo que se tratam de dois crimes repugnantes, as duas ofendidas muito contribuíram para a sua realização” e concluía “Raparigas novas, mas mulheres feitas, não hesitaram em vir para a estrada pedir boleia a quem passava em plena coutada do chamado macho ibérico. É impossível não tenham previsto o risco que corriam; pois aqui, tal como no seu país natal, a atracção pelo sexo oposto é um dado indesmentível e, por vezes, não é fácil domina-la”.

Pergunta-se e reabre-se o debate: a Justiça em Portugal é demasiado sexista? Poderá não o ser na maioria dos acórdãos, mas nos últimos anos têm vindo a público outras decisões polémicas, tais como a que em 2011 teve origem num acórdão da Relação do Porto, no qual se absolvia o reu, um psiquiatra, do crime de violação, durante uma consulta, de uma paciente grávida, entendendo os juízes que a vítima poderia ter resistido.

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No acórdão podia ler-se: A não ser que admitisse que o mero ato de agarrar a cabeça provoca inevitavelmente e automaticamente a abertura da boca”, consideraram assim os Juízes que o desrespeito pela vontade da ofendida não pode ser qualificada de violência.

Em 2015, um outro acórdão fez correr muita tinta, quando o Supremo Tribunal Administrativo, decidiu reduzir o valor de indeminização a uma mulher que tinha ficado com lesões irreversíveis depois de uma cirurgia na Maternidade Alfredo da Costa, num caso de negligência médica.

No acórdão, que determinou tal decisão, os juízes consideraram que o problema de saúde da autora do processo era antigo e que a cirurgia não fez mais que agravar queixas que não eram novas. Até aqui poderia não haver contestação ao acordado, mas a indignação gerou-se quando os juízes, para o justificar afirmavam: “Importa não esquecer que a autora na data da operação já tinha 50 anos e dois filhos, isto é, uma idade em que a sexualidade não tem a importância que assume em idades mais jovens, importância essa que vai diminuindo à medida que a idade avança”.

Do recurso para o TEDH (Tribunal Europeu Direitos do Homem), veio Portugal a ser condenado no pagamento de 5710€ à autora, por violação da Convenção dos Direitos do Homem nos seus art.º 8º e 14º, afirmando aquele Tribunal que: “A decisão baseou-se sobretudo na ideia de senso comum de que a sexualidade não é tão importante para uma mulher de 50 anos e mãe de dois filhos como é para alguém mais novo. Na opinião daquele Tribunal, estas considerações mostram preconceitos que prevalecem no sistema Judicial português”.

Mas o TEDH vai mais longe, quando refere, na crítica ao sistema português, ao constatar que em 2008 e 2014, em dois casos de negligência médica movidos por homens, a justiça nacional não tinha sido tão condescendente.“ Nestes casos, o Supremo considerou que “o facto de os homens não poderem voltar a ter relações sexuais normais afectara a sua auto-estima e resultou num ‘choque tremendo’ , independentemente da sua idade ou se tinham filhos ou não”.

Já 2015 Gabriela Knaul, relatora da ONU e que se deslocou a Portugal para avaliar o sistema Judicial português, não detectou apenas as habituais queixas de morosidade e dificuldades de acesso das pessoas mais carenciadas. Assinalou que é fundamental uma formação adequada e sensibilização dos juízes e procuradores para um melhor desempenho dos atores judiciais no tratamento das vítimas de todos os crimes. Isto é especialmente verdade enquanto meio para evitar a replicação de preconceitos nas decisões judiciais ou a adopção de medidas contraditórias, nomeadamente no que diz respeito á prisão, o que poderá facilitar o acesso de agressores conhecidos às suas vítimas”.

Voltando ao debate, as referencias à Bíblia e à shaira , foram criticadas pela Conferencia Episcopal Portuguesa e que entretanto foi aberto um processo para recolha de elementos por parte do Conselho Superior de Magistratura.

Se as observações sobre o facto do adultério da mulher ser gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem”, foram críticas unanimes, as opiniões dividem-se na discussão de fundo e que já realçamos anteriormente. Será este (ou estes) um caso sintomático ou uma excepção á regra? A Srª Ministra da Justiça afirmou, de forma peremptória, quando interpelada por um meio de comunicação social “ não é um caso que faz o sistema”. Já o Presidente do Sindicato dos magistrados do Mº Pº, ao mesmo órgão de comunicação social afirma “ a maioria dos magistrados que exercem funções na primeira instância em Portugal são mulheres. Já a maioria dos magistrados nas instâncias superiores são homens” acrescentando que “a generalidade da justiça é administrada na primeira instância”.

Já o Presidente da APAV, em declarações ao mesmo periódico, disse que acredita que este caso expôs uma realidade conhecida no país, afirmando sabemos que há visões extremamente passadistas, contra os valores básicos dos direitos humanos, umas vezes disfarçadas, outras menos disfarçadas. E o que aconteceu foi , por um lado , importante para se perceber que essa visão de um Portugal moderno na era de afirmação dos direitos do homem- o próprio Secretário-Geral da ONU, aliás um português- ,é completamente também por outro tipo de visões que acabam por estar escondidas”.

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A confirmar que existem problemas, podendo ser uma amostra maior ou menor do que passa na Justiça e para terminar esta nossa coluna de opinião, citamos um estudo publicado este ano pela Comissão para a Cidadania e Igualdade, o qual analisou 500 decisões tomadas entre os anos de 2010 e 2013, sobre casos de violência doméstica. Na sua análise concluíram que o sexismo existe, há uma tendência para a psiquiatrização do arguido e também casos em que a culpa é reduzida pela promiscuidade da vítima, reparos que assentam como uma luva nas críticas feitas aos desembargadores da Relação do Porto. Numa das sentenças analisadas, lia-se a mesma ideia para determinar uma pena suspensa de um agressor (a este respeito, note-se que em cerca de 85% das sentenças proferidas aplicam a suspensão da pena ao arguido). O arguido tinha voltado a viver com a vítima, é trabalhador, não voltou a ameaçar e “agiu motivado por a vitima ter tido relações com outros homens”.

Concluímos assim, que as Forças de Segurança, a Segurança Social e outros organismos intervenientes no processo, se encontram consciencializados do problema e agem em defesa da vítima, tentando minimizar os estragos morais e materiais causados. A Justiça, não acompanhou esta consciencialização e como é costume, parou no tempo e cita Códigos com 100 ou 200 anos, já mais que ultrapassados e cita o Velho Testamento e também ele revogado pelo Novo Testamento.  

Julgamos que deve haver uma especialização de magistrados, com formação específica para julgarem, com alguma isenção e seriedade estes casos.

Assim vai a Justiça em Portugal!

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