Primícias Literárias: A Falsa Voz

Uma pessoa encontrava-se numa espécie de hibernação dentro de um buraco largo num tronco de uma árvore. 

Durante décadas, dormia ou mantinha os olhos abertos, a observar o que se passava lá fora através da entrada do tronco. 

Os olhos, quando os abria, esbugalhados, observavam um pedaço de relva cintilante, repleta de flores e, ao longe, nuvens que, quando dispersavam, mostravam o céu azul.

Claro que a paisagem dependia das estações e do tempo. A pessoa, sem grande sentido crítico, aprendia através do que via.

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Um dia ouviu uma voz, uma voz que vinha do tronco, mas ao mesmo tempo parecia entrar na sua mente:

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

– Tu, encolhido como estás, talvez fosse melhor seres uma daquelas plantas. 

A pessoa não respondeu. Não sabia como falar, só ouvir. A voz, que parecia cada vez mais próxima, parou de vir da árvore. Estava dentro da sua cabeça:

– Observa como as flores padecem. A chuva foi criada para massacrar os seres pequenos. 

De certa forma, a voz tinha razão. Depois de um longo monólogo interior, a pessoa passou a acreditar que a chuva era inimiga das plantas.

Num dia de Sol, depois de vários meses, talvez anos, a voz voltou a percorrer a mente da pessoa:

– Observa como as flores se empinam, arrogantes. Vivem para sugar a vida do subsolo, nada mais. São infestantes!

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A pessoa acreditou que as plantas nada davam à terra para viver.

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Décadas percorreram o tempo. E a voz, mais uma vez, convenceu a pessoa de que o tempo era a maldição de todos os que viviam.

A pessoa, enrolada no seu interior, compreendeu que a voz não a queria ajudar. As plantas não murchavam depois da chuva, as flores não criavam uma terra infértil e seca, e acima de tudo, o tempo transformava o mundo num constante movimento de vida.

Lentamente, saiu do tronco e caminhou pela primeira vez. Era livre e podia finalmente caminhar. Olhou o tronco no seu todo, ancestral. E no espaço em redor tudo eram troncos como o seu, onde pessoas permaneciam e outras, vagarosamente, davam os primeiros passos no mundo.

Caminhou em direção ao sol, e sentiu no coração o calor que lhe dizia, afinal, que as decisões na construção de um mundo livre, de paz, sem guerra, também eram suas; que, adormecidos pelas ideias absurdas de outros, os nossos passos deixam de ter peso e ficam fundidos no vazio. Os outros não somos nós.

Sorriu e percebeu que devia gritar, dizer sem medo que a paz e a liberdade são um bem único que tem de cobrir o mundo. Sentiu que as nossas ações têm de trazer paz. Gritou: PAZ. E a onda da palavra, repetida por milhões de vozes, ecoou e penetrava em cada tronco ressequido. A paz tem de lutar contra a loucura de grupos que não a entendem.

Paz!

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