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Recriação histórica do Recontro de Valdevez reacendeu chama do “primeiro dia do reino”

O Paço de Giela serviu de cenário à reconstituição histórica do Recontro de Valdevez, num recuo de quase novecentos anos no tempo. Um vasto programa, com diversas recriações da vida quotidiana, entre artes, ofícios, comércio, música, dança e teatro, ajudou a reproduzir, de 7 a 9 de julho, o mais fielmente possível, toda a vivência que rodeou o Recontro que aconteceu em 1141 entre o exército de Afonso Henriques e o do primo Afonso VII, protagonistas maiores do único torneio registado (mas, provavelmente, não o único ocorrido) na história medieval portuguesa.

A realização começou sob fortes condicionalismos no dia 7 de julho. A chuva torrencial que caiu a meio da tarde reduziu a participação dos mercadores e dos artesãos inscritos, afastou muitos interessados do banquete com D. Afonso Henriques e cancelou o espetáculo de teatro de fogo. Salvou-se, no entanto, a vertente recreativa, com a companhia Cornalusa, de Coimbra, a tocar, e bem, “modinhas”, para alegria da assistência que adora música de época.

O dia 8 abriu com o cortejo dos recrutados e guerreiros acampados nas colinas do paço. No desfile, com os cavaleiros na dianteira, seguiam 112 atores da “comitiva real” e 514 elementos do associativismo arcuense. De volta, à frontaria do “castelo”, foram dadas instruções para reforçar a esperança e o espírito nas hostes de Afonso Henriques. E, com bastante público a assistir, foi feito um agradecimento às gentes de Valdevez.

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Depois, num ato cheio de graciosidade, no acampamento militar, deu-se a cerimónia de investidura dos cerca de trinta cavaleiros petizes que, acompanhados dos pais, receberam, empolgados, a respetiva carta, entregue em mãos por Afonso Henriques, que deu colinho aos mais pequenos.

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Até à encenação noturna, reinou o espírito medieval na Praça dos Mercadores e dos Ofícios, no Largo do Sustento e no Castelo dos Infantes e Petizes, três dos vários espaços de visitação, enfeitados com 485 fardos de feno. Nos acampamentos medievais, de tudo um pouco foi visto e experimentado, entre armaduras, lanças, artigos de carpintaria, ferraria, velaria… Sérgio Ventura, que dormiu na “tenda”, detém-se, a tarde toda de sábado, a aprontar uma lira saxónica, enquanto, numa pausa, explica a um casal de namorados como era o ofício de carpinteiro há nove séculos. Neste acampamento, e noutros à volta, os elementos cenográficos e afins, como decorações, estandartes e trajes, concorrem para a vivência medieval.

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Mas a grande novidade, desta segunda edição, é que os “inquilinos” dos acampamentos foram descrevendo aos grupos que iam chegando os costumes, a forma de estar e o quotidiano de meados do século XII. As associações culturais e recreativas locais (num papel muito mais passivo do que ativo) foram recebendo, à vez, autênticas “aulas” acerca, por exemplo, da confeção e do papel da cota de malha (armadura) ou da progressiva sofisticação do elmo (“capacete” com viseira e crista), espécie de mote castrense para sessões instrutivas.

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Na “praça” de alimentação, com muitas iguarias “medievais” no menu para abrir o apetite, lá estavam as fogaças, o pão com chouriço, os enchidos, os crepes e outras iguarias. Nas tasquinhas dos produtores locais, os petiscos que mais saíram foram as pataniscas, as bifanas, os rissóis e os bolinhos de bacalhau. Por perto, os artesãos, todos trajados a rigor, elogiam o formato, mesmo se o negócio, para a maioria, tivesse corrido assim-assim ou mal. Seja como for, houve quem tivesse vendido artigos em pele, joias “medievais”, peças de cerâmica e diverso artesanato.

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O entretenimento que se foi “respirando” (quase) em permanência até à recriação do Recontro, foi assegurado pelas companhias de teatro e pelos grupos de música que a organização contratou para “prender” o público. O quarteto dos Cabra Cega, com artistas de Braga e do Porto, deixou a assistência rendida à música medieval que foi tocando no recinto.

Mas o público infantil, também, teve uma programação específica, principalmente no Castelo dos Infantes, onde se misturaram histórias fantasiadas, jogos/brincadeiras medievais e pequenos torneios. Pelo recinto, sem lugar certo, os miúdos (e os graúdos) batiam palmas às rábulas improvisadas e ficavam maravilhados com os malabarismos que um cuidador ia fazendo com um pitão.

Aproxima(va)-se, entretanto, a hora da mística encenação noturna (a primeira de duas repartidas pelo fim de semana). Numeroso público sobe a calçada em direção ao anfiteatro que ladeia o “campo de batalha”. O público acantonado nas imediações da “arena”, mal recebe ordem, entra no anfiteatro, demasiado pequeno para acomodar a multidão, que se concentra, também, no campo de cima, com vista privilegiada para a liça que se avizinha. Para ajudar à ambiência, a organização distribui coroas pelos espetadores, “reis” por um dia…

Ao campo de peleja, chega o exército de Afonso VII de Leão e Castela. Alertado, Afonso Henriques sai-lhe ao encontro e está montado o “arraial” em Terras de Valdevez. Anuncia-se na aparelhagem sonora o episódio. É o Recontro de Valdevez. Parece haver uma ligeira vantagem do lado Portucalense, porque estava posicionado um pouco mais acima. Os primeiros embates ditam vitória de um lado, vitória do outro.

No campo, que não será de batalha campal, como a seguir se verá, juntam-se, com honra, valor e denodo, os mais valentes homens de armas – d’el rei de Leão e Castela (Afonso VII) e de Afonso Henriques, rei dos Portucalenses – que se hão de digladiar em jogos de perícia e manejo.

Nesse período, assim reza a História, traçava-se o limite de fronteiras. Na disputa de território, a moirama (terra de muçulmanos) e os mouros, a sul, eram o inimigo comum e nisso residiu um ponto de concórdia que evitou uma tragédia. “Não haveria bom resultado na contenda, se as coisas dessem para o torto”, concluiu-se. Ou seja, as duas forças beligerantes, sem derrame inútil de sangue nobre, sairiam, evidentemente, ambas a ganhar.

E, de facto, em vez da esperada batalha, houve, sim, entre os “melhores homens”, um bafordo. Neste, do lado Portucalense, foi aferida a prova da conquista do paço, feita pela cavalaria; da parte de Leão e Castela, a prova consistiu numa espécie de cerco. Também foram realizadas “justas de cortesia”, sem hostilidade, nas provas de campo de batalha sem batalha.

Empatadas as causas, foi ordenada uma “prova de desempate” – um frente-a-frente, com recurso a espadas e lanças. Em obediência ao bafordo, ou seja, ao “juízo divino”, coube a “Deus Nosso Senhor”, com a sua justa, ditar que seriam os portugueses a sair vencedores deste litígio (que teve algumas nuances em relação à encenação de 2016).

A iminente batalha campal do Recontro de Valdevez, segundo relatos da História de Portugal, virou, portanto, um simples bafúrdio, de costume medieval, aparecendo o torneio como um momento importante da fundação da nacionalidade portuguesa. Na ótica de alguns historiadores (que não fazem unanimidade), o episódio retratado significou a afirmação de Afonso Henriques no seu voluntarioso sonho de construir um reino autónomo (no extremo ocidental da Europa), festejado, nesta recriação, com uma “explosão” de fogo, que, no meio do breu, se ergueu do Paço de Giela.

A grande lição que se tira, quando estão volvidos 876 anos, é que os exércitos em liça perceberam que se podia fazer muito mais unidos do que separados. E este ensinamento ganha outro simbolismo à luz do abraço entre os contendores da refrega, superiormente representada pela alegoria “amor em tempo de guerra”, que funciona como uma espécie de senha para um futuro redentor.

A organização – com recriações menos empolgantes este ano (apesar do fogo preso que iluminou o Paço de Giela) – emparceirou, de novo, o Município de Arcos e Valdevez e a Viv’Arte, a afamada companhia de teatro, de Oliveira do Bairro, que restaura e enaltece a História de Portugal desde 1998.

A realização custou 45 mil euros aos cofres municipais.

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