Bicadas do Meu Aparo: Vi, amei e odiei

Artur Soares

Escritor d’ Aldeia

 

  

Nos tempos da minha juventude, neste meu Portugal, existia “a onda” de que “homem que não dá tropa, não é homem”. Tal mentalidade “pró militarismo” é muitíssimo anterior aos anos sessenta do século passado.

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

 

Entende-se a “onda”, pois é precisamente durante e a partir do fim da Segunda Guerra, que Portugal – do Minho ao Algarve – inicia um período fortíssimo de fome e de falta de empregos, para não falar dos mesmos cancros já existentes e iniciados pela política de toda a Primeira República.

 

Assim, e pretendendo-se verdadeiramente “fugir à fome nacional” então existente, são sobretudo os jovens da periferia que tudo fazem para deixar os campos e cumprirem a vida militar que, anteriormente aos anos sessenta, já era obrigatória.

 

Outro interesse por ir para a tropa, “dar a tropa”, era o facto dessa vivência militar ser obrigatória, ainda, para bem de quem quisesse concorrer às forças militares ou militarizadas, após passar-se à vida civil.

 

Perante tal realidade nacional (de então), e como é evidente, eram poucos os que “davam tropa”, uma vez que se vivia em tempo de paz e o exército português não existia para matar a fome de ninguém, excepto aos que eram militares de carreira e defensores acérrimos da existência da segunda república, isto é, do Estado Novo.

 

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E como os tempos mudam e  não param, surge o ano de 1960 e o início da guerra em Angola que, à semelhança da Guiné e de Moçambique, absorve duma forma frenética os jovens para o serviço militar.

 

Para a guerra.

E então, nessa nova circunstância nacional, todos os jovens “dão tropa”: à excepção dos cegos, dos que fugiam “a monte” para o estrangeiro, dos pernetas e dalguns manetas, tudo servia de “carne pra canhão”.

 

Eu, que não quis fugir, não era cego fisicamente, nem perneta nem maneta, tive de ser carne para canhão, mobilizado para Moçambique. E não écarne para canhão, somente aqueles que morrem na guerra!

Os que têm a sorte de viver fisicamente, morrem doutra forma terrível e diariamente, pelo que vêem e pelo que sofrem: a dúvida de viver o minuto seguinte, a ansiedade, a saudade da família, a longevidade quilométrica (caso de Angola e muito mais de Moçambique), a fome e a sede, o pouco respeito pela própria vida e o nulo respeito pela vida dos outros. É o viver e o pensar animalizantes!

 

E com verdade amei Moçambique!

As suas gentes, costumes e respeitando sempre o que à minha volta existia. Ainda me vejo nas florestas e entre o capim, bem como o tudo que fui obrigado a viver e do tudo que odiei.

Mas a minha vida como ex-militar (obrigado) em Moçambique, daria um bom filme? Dava. Mas não. Não dava nem permitiria que me fizessem tão-pouco, participante de tal filme.

 

Pertenci àqueles milhares duma “comissão de serviço” militar. Não fui herói, cumpri o meu dever. Nunca recuei face aos trabalhos que os meus superiores me traçaram naquelas caminhadas, trepando aos penedos ou derrubando o capim mais alto que o meu cadáver vivo na vertical.

 

Vi. Vi a verdura da paisagem, o doirado do capim aceitando o fogo, o inimigo que procurava ter aquilo que lhe pertencia.

 

Vi os meus amigos mortos em combate (oito) a fome e a sede, e ouvi o estampido dum puxar no gatilho, que friamente despejaram ao ouvido dum inimigo, porque um companheiro nosso tinha tombado.

 

Sorri, depois ri loucamente, ferrei os dentes e bati fazendo buracos no chão, com os tacões das minhas pesadas botas. Abri os olhos para ver mais e melhor ao meu redor. Eu ria. Ria, só ria. Depois estremeci. Que tinha visto? Com que direito? É certo, “quando se mata inconscientemente, os santos choram, mas não fazem queixa a Deus”, como me afirmou o padre Armando Trocado Netta, um dia, ao participar num Cursilho de Cristandade!

 

Vi aqueloutro meu amigo, que depois de ter dormido um mês num buraco, para se livrar das balas inimigas – que não podendo livrar-se dos ataques das gigantescas formigas – preparou um bom aposento (um outro buraco coberto a capim) para “tranquilamente” dormir e jogar a sueca, com a luz de uma candeia a petróleo.

 

Vi-o depois, mais tarde, entrar no “aposento” e fugir dele, porque a candeia incendiou o telhado de capim. Entrou novamente para salvar a mala e a canhota, (1) e vi o seu telhado e eles depois queimados pelas chamas.

 

Vi-te assim, companheiro! Que culpas terás tido? Fizeram tudo para que viesses connosco! Até vi lágrimas no rosto do Capitão. Aliviaram-te quando as peles queimadas te pesavam de encontro ao dorso. Como foste corajoso! Dizias que foi descuido teu. Choravas e a seguir rias, porque tinhas salvo a arma!

 

Vi as pontes, os quartéis e a pista para aviões que construímos.

Vi as picadas sem bermas nem alcatrão e ouvi minas que rebentaram.

Vi as estrelas cintilantes quando me deitava no capim a pensar no meu regresso e no perigo que me rodeava.

 

Vi os negros que “sorriam” e batiam palmas quando eu passava.

Vi as crianças inocentes às costas das suas mães receosas, porque não me compreendiam ali.

Vi e senti as moscas que sugavam o meu sangue, deixando-me talos na carne do seu viver parasita.

 

Vi as latas e as garrafas de cerveja vazias, que acompanhavam a galinha à cafreal ou o bife de borrego.

Vi o atum e as salsichas no arroz diariamente e vi o arroz no atum e nas salsichas.

Vi os negros a lavarem-se nos rios, a lavarem suas roupas e a trabalharem na machamba, protegidos pelas armas.

 

Vi os negros a cantar e a batucar para mim, em troca de água de Lisboa (2), de vinho ou de cigarros.

Vi os comerciantes comprarem algodão e a venderem tiras de pano e peixe seco aos negros.

 

Vi tudo, meditei tudo e sinto que, 50 anos depois do meu regresso, me dói a cabeça e os ossos, o fígado e o estômago, os ouvidos e o reumatismo e que grande parte da minha sensibilidade foi rapacidade por intolerantes e egoístas. Vejo ainda que nada me devia doer, porque se alguns políticos da 2ª República tivessem filhos para mandar prá guerra e se aqueles que fizeram o 25 de Abril não tivessem programado a guerra nos gabinetes e nos quartéis…, nada, absolutamente nada, eu teria visto. 

                      

1) Arma, G-3.

2) Aguardente.

 

(Artur Soares  – Braga –  Ex-2º Sargento Miliciano de Infantaria)

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