Extracto do Diário de uma Nómada

Joana Cardoso

Arquiteta

Dia 12 de Novembro de 201?

 

Encontrei um quarto – o quarto em que escrevo. É amplo, de planta rectangular. Um armário, uma cómoda, uma mesa para quatro e um sofá cama, linha barata do Ikea. Escrevo na mesa para quatro, sentado numa cadeira de plástico. Há mais três, mas estão vazias. 

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No canto do quarto há uma janela, pela qual vejo Londres, a cidade-feitiço. Muitos dos que para cá vieram buscam emprego ou aventura, ou um conhecimento mais amplo do mundo. Eu cheguei guiada por aquela força invisível que me acompanha sempre. Há quem lhe chame instinto, ou anjo da guarda. 

 

Pela janela vejo prédios altos. Ainda não é completamente noite, os edifícios formam uma massa escura recortada contra o céu. As luzes estão ligadas, todas iguais. Vida eficiente. O admirável mundo novo numa caixinha de cartão. O meu trabalho é fazer essas caixinhas, sentada, eu própria, numa delas. Plantas e alçados, cortes e detalhes, faço com afinco o desenho para mais caixinhas. Acaba o dia e venho para a minha. E então pergunto-me, com o vento a bater no meu cabelo sujo pelo ar condicionado, qual é o sentido da vida. Olho à minha volta e dezenas de janelas devolvem o olhar, desconfiadas. Acho que ainda não é a altura de eu descobrir.

 

Neste quarto, onde mais uma história começa, como uma “carrot and coriander soup”. As duas línguas entrelaçam-se na minha cabeça, já não sei mais em que língua fala o pensamento. Sonho em português, às vezes em inglês. Em pequena quis perguntar a uma amiga de família, uma francesa a viver em Portugal: “Em que língua pensas?” mas nunca me senti à vontade.  Será que a nova língua ocupava o lugar da antiga? Será que as duas línguas se misturavam? Será que a cabeça ficava sempre prisioneira das origens? A resposta, vim a descobri-la agora. É tudo verdade. Ganho todo um vocabulário novo, que se entrelaça no anterior, e descubro que afinal a vida precisa mesmo do dobro das palavras.

 

Nuns boiões de vidro, grandes e bojudos, enfiei um molho de luzes de natal. Cintilam baixinho, dando ao quarto uma atmosfera especial. Os pontinhos brilhantes reflectem-se na caneca em forma de sapo da Bordalo Pinheiro.  Bordalo Pinheiro. Sapatos da Serra da Estrela. Requeijão. Bacalhau à braz. Pastéis de bacalhau com queijo da serra, novidade vendida em Lisboa numa loja chique. O reviver da marca “Portugal”, encantando turistas ricos por encontrar um país em que tudo é tão “quirky” e ainda por cima baratíssimo. Revistas internacionais sugerem Lisboa como destino do ano. Vai-se lá passar o fim de semana, ao casamento de uns amigos. São os dois ingleses mas apaixonaram-se por Cascais. É tudo baratíssimo. Baratíssimo. E o tempo é do melhor que há.

 

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Volto à minha janela. Tento contar as luzes, mas perco a paciência. Os pontinhos misturam-se entre si, como as memórias dos últimos quatro anos. 

Consola-me o facto da minha própria janela ser uma pintinha luminosa para alguém. Um casal passa na rua, ouço-os a rir. O pensamento agradável transforma-se em amargura. Vou para dentro que olhar pela janela é para os velhos. Ora os velhos, por estes lados, foram todos expulsos.  

 

A minha casa é simples. De cada vez que me mudo deixo um pouco para trás. Tenho apenas uma toalha, enquanto ela seca não posso tomar banho. Tenho uma caneca de café e um prato de sopa que dá para todas as refeições. Massa, caldo, arroz, iogurte, leite com cereais. Salada de fruta e das outras. Creme de leite. O tipo que partilha casa comigo come sempre sanduíches, de modo que também se arranja com um prato só. Lava o seu grande prato todas as terças e durante o resto da semana deixa-o em cima de secretária, cuidadosamente colocado em cima de um farrapo imundo que faz as vezes de individual. Apesar de imundo, o dito farrapo é colocado, em perfeita simetria, mesmo a meio da secretária, em frente ao portátil, à direita da caneca com um tapete de café seco lá no fundo. Não é o ascetismo da pobreza, o nosso. É um estado de nómada que regressou de rompante, na era dos aviões e do Skype.

 

Nesta cidade a fervilhar de gente, de hábitos e de gostos, o mais provável é encontrar alguém cujas idiossincracias diferem em tudo das nossas – especialmente se encontrado num anúncio. “Arrenda-se quarto amplo. Casa a partilhar com profissional de trinta e sete anos, sexo masculino, limpo e arrumado. Por favor não se candidate se tenciona fazer festas no apartamento.”

 

Já está a dormir. Deita-se sempre muito cedo e acorda antes das sete da manhã. Aposto que dorme muito direito, de barriga para o ar, com os pés grandes a sair do cobertor. Em breve vou dormir também, para amanhã enfrentar mais um dia na frustração da cidade dos desejos.

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