A Inteligência Artificial

Paula Teixeira de Queiroz

Escritora

Antes que a Inteligência Artificial nos domine deixa-me escrever as minhas mais doces memórias, qualquer dia somos ultrapassados pelas memórias de qualquer computador a contar como as teclas lhe doem e como lhe nasceu a vontade de escrever.

Os meus filhos são muito voluntariosos, espontâneos, nunca foram de pedir licença nem se deixar programar. São fruto de uma mãe que nunca planeia e que vive da (pouca) inteligência emocional que lhe foi destinada pela força maior que nos move a todos. 
Está a fazer 31 anos que o meu filho Bernardo nasceu, e, como nos acontece a todos maiores de 50 anos começo a pensar que escorreguei na armadilha do tempo e ainda não parei até perceber um dia que sou uma velhinha rodeada de netos a quem tenho de atar a uma cadeira para poder contar uma história.

Naqueles tempos obedecia-se aos pais. No meu tempo, eu obedecia ao meu pai. O meu pai era impositivo e exigente, como poucos conseguem ser. E a sua autoridade não era questionada. No verão, em Cortinhas, descobri correspondência trocada nos primeiros anos da faculdade em que fiquei deprimida com o meu medo, o medo de o desiludir na faculdade. Eu era pouco mais de uma criança de dezoito anos – para os padrões de hoje – e vivia obcecada com o medo de o desiludir. Entre o ódio ao curso de Direito e o medo de o desiludir, entre soluços, acabei um curso conflituoso com toda a minha sensibilidade, sempre em combustão com a fantasia que me brotava do espírito, e pela teimosia em me superar.

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

Foi no meio deste conflito, desta guerra interna que me dilacerava que, chegada ao 5º ano pedi autorização para casar. Nós pedíamos autorização para casar “naquele tempo”. Casei em Janeiro, quase no princípio do ano lectivo. A condição seria não engravidar até terminar o curso. Que sim, prometi. E nem me passava pela cabeça não obedecer, naturalmente.

Passados uns meses sentia-me com tonturas, desmaios, achava que ia morrer, mas nunca me passou pela cabeça que estivesse grávida. Sempre fui dramática e dada a achaques de meia hora que seriam esquecidos a dançar nas pistas do Stones, Ad Lib, Bananas, Whispers, Primorosa de Alvalade, Van Gogo, Azenha, adorava dançar até de manhã – e ainda adoro embora fique a morrer uma semana -, e, portanto, não liguei.

Mas sim, passado um mês de me casar, mesmo sem saber, contra a minha promessa, estava grávida do Bernardo.

O maroto do Bernardo, teimoso como só ele sabe ser, ainda hoje, decidiu que viria ao mundo no dia 28 de Outubro. E veio mesmo! Acompanhou-me nas idas para a faculdade, no desencanto das aulas, e na paródia do bar com os meus colegas e amigos de sempre, o João e o Zé Miguel. Entre o bar, o cinema e o escritório do pai do Miguel, o senhor bastonário da ordem dos advogados onde armavamos cenas hilariantes, o Bernardo lá nos acompanhava, sem consciência de que a sua mãe era uma criança grande. Talvez por isso também ele ainda seja uma criança grande. Talvez só “acorde” quando for pai, como me aconteceu, quando fui mãe de facto, pois de direito já era.

O bebé Bernardo, muito bem acomodado na barriga da mãe, assistiu ao jantar de finalistas, à benção das fitas nos Jerónimos, à falta de pachorra para as aulas, enfim, não foi lá um grande exemplo. Tenho a certeza de que é por isso que é irreverente, cheio de quereres, mimado, aventureiro, muito teimoso e, sem o saber, o tesouro mais bem guardado no coração da sua mãe.

Que a Inteligência Artificial (AI) não desate por aí a escrever memórias e a ter filhos é o que eu mais desejo na véspera do 31ª ano do meu filho.

  Partilhar este artigo