Morreu o escritor Milan Kundera, satirista do totalitarismo

A ministra da Cultura de França considerou hoje o escritor Milan Kundera como “uma das maiores vozes da literatura mundial”.

Ele é, sem dúvida, uma referência incontornável da literatura mundial, o autor de A Insustentável Leveza do Ser tinha 94 anos.

Nascido na República Checa, Milan Kundera passou grande parte da vida em França, onde se exilou em 1975.

Crónico candidato ao Nobel da Literatura — que nunca venceu —, Kundera é provavelmente o escritor checo mais conhecido no mundo depois de Franz Kafka (1883-1924).

Milan Kundera morreu nesta quarta-feira em Paris, aos 94 anos, noticiou a televisão pública da Chéquia e confirmou a sua editora em França, a Gallimard, que fala numa morte após “doença prolongada”.   Desaparece assim um dos maiores nomes da literatura do século XX, e de sempre, alguém cujos romances “sombrios e provocativos mergulham no enigma da condição humana”.

A história deu razão a Milan Kundera.

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A Dom Quixote, a sua editora de sempre em Portugal, editou este mês Um Ocidente Sequestrado – Ou A Tragédia da Europa Central, livro que reúne dois textos escritos antes da queda do Muro de Berlim e do fim da Guerra Fria. São eles o discurso de Milan Kundera no Congresso dos Escritores da Checoslováquia de 1967, durante a Primavera de Praga, e um artigo publicado na revista francesa Le Débat, em Novembro de 1983.

“Estes textos debatem corajosamente as ameaças que pesam sobre a Europa e a sua identidade cultural, a necessidade de liberdade e autonomia dos criadores artísticos contra uma cultura de propaganda e contra a censura, o papel da barbárie na vida das nações e dos seus povos”, lê-se na sinopse da editora. “São surpreendentemente premonitórios, como acontece muitas vezes com os grandes escritores.  

Passos importantíssimos foram dados na construção dessa Europa livre e democrática, e a história deu razão a Milan Kundera: as ‘pequenas nações’ centro-europeias integram agora esse mundo fundado numa cultura livre e respeitadora das línguas e tradições dos povos que as compõem. Mas as ameaças estão de novo bem à vista, com o ressurgimento das ideias censórias e autoritárias e com a invasão da Ucrânia pelo regime autocrático da Federação Russa em 2022. As batalhas por essa Europa sonhada por Kundera voltam à primeira linha das nossas preocupações.”

 

Dele é esta reflexão:

“A vida humana só acontece uma vez e não poderemos jamais verificar qual seria a boa ou a má decisão, porque, em todas as situações, só podemos decidir uma vez. Não nos é dada uma segunda, uma terceira, uma quarta vida para que possamos comparar decisões.”

A Insustentável Leveza do Ser

Milan Kundera

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Citações da obra:

“Os amores são como impérios: desaparecendo a ideia sobre a qual foram construídos, morrem junto com ela.”

“O amor não se manifesta pelo desejo de fazer amor (pois isso se aplica a todas as mulheres) e sim pelo desejo o sono compartilhado (isso se aplica a uma só mulher).”

“As metáforas são muito perigosas. Não se brinca com as metáforas. O amor pode nascer de uma simples metáfora.”

“O sono compartilhado é o corpo de delito do amor.”

“Nesse mundo tudo é perdoado por antecipação e tudo é, portanto, cinicamente perdido.”

“Eu a desejava como se desejam todas as coisas perdidas para sempre.”

“O amor começa por uma metáfora. Ou melhor: o amor começa no instante em que uma mulher se inscreve com uma palavra poética em nossa memória poética.”

“No começo do Gênese está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e outros animais. É claro Gênese foi escrito por um homem e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo. O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade inteira manifesta acordo unânime, mesmo durante as guerras mais sangrentas.”

“São precisamente as perguntas para as quais não existem respostas que marcam os limites das possibilidades humanas e traçam as fronteiras da nossa existência”.

“Antes de sermos esquecidos, seremos transformados em kitsch. O kitsch é a estação intermediária entre o ser e o esquecimento.”

“Se pode com razão, criticar o homem por ser cego a esses acasos, privando a vida da sua dimensão de beleza.”

“Aquilo que não é consequência de uma escolha não pode ser considerado nem mérito nem fracasso”

“Mesmo nossa própria dor não é tão pesada como a dor consentida com outro, pelo outro, no lugar do outro, multiplicada pela imaginação, prolongada em centenas de ecos”

“Sentiu um peso, mas não era o peso do fardo e sim da insustentável leveza do ser”

“O mito do eterno retorno nos diz por antecipação que nós só vivemos uma vez, e sem repetições, portanto, nunca poderemos comparar uma situação com outra.”

“Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida, já é a própria vida.”

“Tenho sempre diante dos olhos Tereza sentada sobre um tronco, acariciando a cabeça Karenin, e pensando no desvio da humanidade. Ao mesmo tempo, surge para mim uma outra imagem: Nietzsche esta saindo de um hotel em Turim. Vê diante de si um cavalo, e um cocheiro espancando-o com um chicote. Nietzsche se aproxima do cavalo, abraça-lhe o pescoço, e sob o olhar do cocheiro, explode em soluços. Isso aconteceu em 1889, e Nietzsche já estava também distanciado dos homens. Em outras palavras: foi precisamente nesse momento que se declarou sua doença mental. Mas, para mim, e justamente isso que confere ao gesto seu sentido profundo. Nietzsche veio pedir ao cavalo perdão por Descartes. Sua loucura (portanto seu divórcio da humanidade) começa no instante em que chora sobre o cavalo. E este Nietzsche que amo, da mesma forma que amo Tereza, acariciando em seus joelhos a cabeça de um cachorro mortalmente doente. Vejo-os lado a lado: os dois se afastam do caminho no qual a humanidade, “senhora e proprietária da natureza”, prossegue sua marcha para a frente.”

“Aquilo que o “eu” tem de único se esconde exatamente naquilo que o ser humano tem de inimaginável. Só podemos imaginar aquilo que é idêntico em todos os seres humanos, aquilo que lhes é comum. O “eu” individual é aquilo que se distingue do geral, portanto aquilo que não se deixa adivinhar nem calcular antecipadamente, aquilo que precisa ser desvelado, descoberto e conquistado do outro.”

“A vida humana acontece só uma vez, e não poderemos jamais verificar qual seria a boa ou a má decisão, porque, em todas as situações, só podemos decidir uma vez. Não nos são dadas uma primeira, segunda, terceira ou quarta chance para que possamos comparar decisões diferentes”

“A história é tão leve quanto a vida do indivíduo, insustentavelmente leve, leve como uma pluma, como uma poeira que voa como uma coisa que vai desaparecer amanhã”

“Nunca somos nós mesmos quando há plateia.”

“Mas era justamente o fraco que devia ser forte e partir quando o forte fosse fraco demais para poder ofender o fraco.”

“Tinha uma vontade terrível de lhe dizer como as mais comuns das mulheres: não me deixe, guarde-me perto de você, escravize-me, seja forte! Mas eram palavras que não podia e não sabia pronunciar.”

“Para ele, a música é libertadora: ela o liberta da solidão e da clausura, da poeira das bibliotecas, e lhe abre no corpo as portas por onde a alma pode sair para confraternizar.”

“A nossa vida não é como um rascunho, a gente não pode simplesmente amassar o papel e começar tudo novamente.”

“Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo “esboço” não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro.”

“Torturava-se com recriminações, mas terminou por se convencer de que era no fundo normal que não soubesse o que queria: nunca se pode saber aquilo que se deve querer pois só se tem uma vida e não se pode nem compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-la nas vidas posteriores.”

“Nunca se poderá determinar com certeza em que medida nosso relacionamento com o outro é o resultado de nossos sentimentos, de nosso amor, de nosso não-amor, de nossa complacência, ou de nosso ódio, e em que medida ele é determinado de saída pelas relações de força entre os indivíduos. A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza, com toda a liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade ( o mais radical, num nível tão profundo que escapa ao nosso olhar) são as relações com aqueles que estão à nossa mercê: os animais. É aí que se produz o maior desvio do homem, derrota fundamental da qual decorrem todas as outras.”

 

Entre as suas muitas obras publicadas avultam os romances:

– A Brincadeira (1967)

– A Vida Está em Outro Lugar (1973)

– A Valsa dos Adeuses ou A Valsa do Adeus (1976)

– O Livro do Riso e do Esquecimento (1978)

– A Insustentável Leveza do Ser (1983)

– A Imortalidade (1990)

– A Lentidão (1995)

– A Identidade (1997)

– A Ignorância (2000)

– A Festa da Insignificância (2014)

– Um Ocidente Sequestrado, ou A Tragédia da Europa Central(2023)

 

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