Todo o mundo é proprietário no Monte de Santa Luzia

Barros Lopes

O meu Amigo António Viana (filho de Mário Viana, o homem que me ensinou a ler, a escrever e … a contar) invocou um dia destes uma sua Professora de Geografia, Raquel Soeiro de Brito, que ensinava aos alunos que as cidades engoliam os campos. E isto vem a propósito que também na presença deste meu conterrâneo alguém ter dito que a Citânia, dita de Santa Luzia, pertencia a um tal Património de qualquer coisa do Estado. Ironizei perguntando se esse tal  “de” Património tinha herdado ou comprado a Citânia. «Que tinha tomado posse», responderam-me!

De lembrar e este detalhe tem muito a ver com o que se segue. O meu Amigo António Viana é sobrinho de Abel Viana (testemunha neste texto) e guarda dele um muito valioso espólio. Ao mesmo tempo, eu tomo a liberdade de invocar Jorge Leitão que, na edição de A AURORA DO LIMA de 14 de Setembro de 2012, assinou um texto com o título “Viana tem complexos de pequenez…” , do qual lhe invejo a camisola amarela! Com efeito e conjugando as duas “sentenças” atrás realçadas, no caso de Viana, estas assentam aqui que nem uma luva.

Do processo histórico do desenvolvimento da fixação humana num tal Monte Corrégio ou Terrúgio chegaram até nós (Vinha de Areosa) as ruínas dos estabelecimentos castrejos; a Citânia na cabeça sul deste monte, o Castro no Pego e o de S. Pedro, cujos habitantes abandonando esses lugares deixaram ainda, no meio do monte, os de S. Mamede.

E o que é que os historiadores nos contam a partir daí?  Que no tempo de Teodomiro (ano 570) se realizou o Concilio de Lugo do qual há notícia de um tal Pagus Ovínia. (Paroquial Suevo). De realçar que a esse Pagus chamaram Ovínea e não outra coisa e que segundo reconheceu Almeida Fernandes terá sido uma das intuições acertadas de Figueiredo da Guerra quando este a identifica com Vinha.

GOSTA DESTE CONTEÚDO?

Por essa altura chegou cá um tal  Martinho de Dume que, cristianizando os pagãos e depois de estabelecida a diocese de Tuy, inspiraria o aparecimento da Igreja de Santa Maria de Ovinia (mais tarde se entenderia a sua extensão aquando do Arcediagado da Terra de Vinha.) No ano de 915, Ordonho II terá doado essa igreja à Sé de Lugo. E ainda no mesmo século Afonso IV de Leon doou-a à Sé de Tui. Mais tarde e ainda antes da nossa emancipação, D. Afonso Bispo de Tui deu-a a Nuno Soares (dos tais Velhos que iriam ter papel importante no aparecimento da vila de Viana). E já em 1137 (ou seja um século e qualquer coisa mais  antes do Foral do Bolonhês) o nosso ‘Avô’, D. Afonso Henriques, coutou a vila da Vinha à Sé de Tui. Só em 1256 é que Afonso III “cria” uma nova pobra  na foz do Lima agregando Adro, Castro e Figueiredo que até ali fariam parte da única entidade tutelar reconhecida históricamente existente no terreno – A Igreja de Vinha com o seu território. Tudo isto para defender que a herança histórica dos primitivos do monte Tarrúgio, e no que à nossa Citânia diz respeito, é a  Vinha que pertence  e não a Viana. O que a linha directa desta sucessão assim o mostra. O aparecimento de Viana é um “dano colateral” – trágico mas colateral! No entanto a intelectualidade sempre tentou fazer uma ligação directa de Viana ás povoações primitivas chamando à Citânia de “Cidade Velha” – mais em contraponto com a cidade nova que seria Viana do que remeter para o Castro na sua condição de Cividade -, baptismo que o Castro de Afife ainda conserva. Acontece que, pelo Foral e pela Natureza, Viana nasceu espartilhada pelo monte, pelo rio, pelo mar e entalada a Nascente por Meadela e a Norte/Poente por Areosa (entidades que lhe são anteriores), pequena para ser pequena e o seu encanto seria a sua “pequenez”.

Mas chegamos agora ao tal complexo e dele há vários exemplos que se vão multiplicando até nos dias de hoje. No princípio identitário o Monte era Tarrúgio ou Corrégio. As suas gentes dedicaram-se a diversos cultos. Primeiro, foi o de Santa Águeda do Monte e nunca se ouviu falar que o monte fosse de Santa Águeda. Depois veio a Senhora D’Abadia  mas não deu nome ao Monte. Depois ainda, o culto foi trocado pelo de Santa Luzia. Nesta altura tudo mudou. Santa Luzia que deveria ser do monte (Tarrúgio) passou o Monte a ser o de Santa Luzia. Santa Luzia que deveria ser a da Citânia passou a Citânia, a ser a de Santa Luzia. E os exemplos colonizadores de uma vila que nunca interiorizou que era pequena passou ao ataque daquilo a que eu chamo as aldeias da linha da frente, Areosa e Meadela.

(Em 1973 a Câmara tentou assenhorar-se de terrenos sujeitos ao regime florestal como terrenos de Areosa passando por cima da sua história).

 Mas não só em termos físicos e geográficos como também culturais e tradicionais. A Estrada de Caminha passou a uma rua da vila. A urbanização daquilo que era a Quinta da Cancela de Areosa passou a ser a Urbanização de Monserrate. A campina de Areosa que ia até às Capelas de S. Roque e d’Agonia (que se encontravam fora da vila!), passou a ser considerada de Monserrate. Por alvitre da edilidade, as antigas colónias colonizaram por via crismática os topónimos ancestrais da Veiga de Figueiredo. A Praia Norte ganhou pernas e caminhou mais para norte conservando o seu pomposo estatuto de Praia Urbana! Esta Praia Norte apenas existe porque rebaptizaram as praias da Lagoa, de Ruivas e das Barreiras. Ora os de Viana não se convenceram ainda que a Praia Norte desapareceu! Está sepultada debaixo da rampa de lançamento dos batelões e seu prolongamento nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo.  Na progressão desse fenómeno, se um dia  fosse construído um qualquer terminal a sul de  Barreiras, os de Viana atirariam a praia para o Porto de Vinha e passariam a chamar-lhe Praia Norte. O Matadouro foi construído em cima de leiras da veiga de Areosa; depois, por magia passou a Monserrate. Não há muito tempo a sarna da pequenez infectou quem a ela deveria ser imune. Pela calada de uma certa noite de 90 reuniu em Viana uma mui esclarecida  fabriqueira que decidiu passar a considerar Areosa como freguesia urbana. Da noite para o dia passei de rural a urbano sem dar por ela!… De aldeão a burguês sem dor! De parolo a citadino sem qualquer inseminação. Ainda e já hoje,  quem vem de Carreço encontra na estrada, no inicio  de Sua Vila, uma placona a dizer VIANA DO CASTELO.  Areosa? Nem rasto ortográfico!…  Mas, mais à frente, na rotunda do Caminho dos Ôlhos, há uma outra, desta vez plaquinha, a dizer que afinal Viana é mais para Sul!…  Em que ficamos?!!!

Passando pela colonização do betão e cimento armado que parou milagrosamente em Camboelas devido ao projecto de Emparcelamento das veigas de Areosa, Carreço e Afife  mas que derivou para os lados da Meadela, o complexo vianense reflecte-se também em termos patrimoniais e aqui a  pergunta inicial: A quem pertence a Citânia sendo que esta é de Vinha antes de ser de Santa Luzia? No nome e na dominialidade.

Em 1825 a Câmara de Viana, por imposição de uma Provisão Régia de D. João VI de 1824, aforou os montes aos moradores de Areosa. Esse monte corria de Norte a Sul “… até à Capela de Santa Luzia.”  (textual) pelo que é fácil de entender que para Norte da Capela todo o monte sem excepção ficaria aforado aos de Areosa (que viriam a remir o respectivo foro em 1922). Todo menos o que já estava na posse privada em 1825. Fácil é concluir, pela sua ancestralidade, que seriam todos as bouças já então existentes. ( A provisão exigia que a partir dessa data não fossem feitas mais tomadias.  Mas alguém tomou posse da Citânia pelos vistos!)

Que bouças seriam (são) essas tais? Uma tal do Espinheiro, a chamada Bouça de Santa Luzia; a Bouça do Frade, as Bouças das Borralhadas, as Bouças de S. Mamede, as Bouças de São Pedro, a Bouça do Lourenço, uma bouça isolada, a da Traça, e outras duas a norte do Real.

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Hoje em dia terrenos privados serão essas bouças mais aqueles legitimamente repartidos pela Junta de Freguesia de Areosa a partir de 1825, nas divisões: Primitiva, Secundária e Sortes de Vinte Anos!

Mas apesar do aforamento conter palavras mais esclarecedoras que canhões, a Câmara de Viana “cedeu”, em 1885 uma determinada área de terreno envolvendo o templo à Confraria de Santa Luzia que englobaria terrenos a Norte da Capela. Ou seja depois de assinarem em 1825 o aforamento,  tornaram a doar parte do mesmo a outra entidade em 1885. ( Repetiu façanha parecida com o Ministério da Guerra por volta de 1900.)

E o certo é que os de Areosa foram corridos da zona e quem se insurgiu foi chamado à justiça. Existe ainda um processo elucidativo dos acontecimentos

Dessa argentinice se ressentiu o nosso João Tomás da Costa que em 12 de Outubro de 1929 no Notícias de Viana, reagindo a uns textos anteriormente aí publicados nos quais o autor dos mesmos tentava provar que os terrenos da “cidade velha” eram pertença da Irmandade de Santa Luzia a quem, dizia que, a Câmara  os tinha entregue para seu uso e administração. Invocava então João Tomás da Costa a Provisão do Rei de 1824 o Aforamento do Montes de 1825 e a remissão desse foro de 1922 para concluir que  “O TAL USUFRUTO E ADMINISTRAÇÃO QUE A CÂMARA OUTORGOU, COMO SE DIZ, É NULO NA PARTE QUE SE REFERE  CIDADE VELHA QUE ESTÁ DENTRO DA FREGUESIA DE AREOSA» em monte da mesma freguesia, em terreno que ela era enfiteuta e, como tal, senhora do usufruto e administração do mesmo (artº 1673 do Código Civil). Mais realçou que estes documentos existiam na Câmara onde quem quer os poderia ler.

Já em 1954 Abel Viana testemunhava:

«O Terreno (da Cidade Velha) pertencia à Freguesia de Areosa. O mato era sorteado tinha dono e roço periódico, não sendo raro andarem por ali algumas cabras e vacas a pasto».

Pena que Abel Viana não se tenha dedicado a pormenorizar esta informação. Explicar porque é que os de Areosa foram arredados do sítio nem qual a legitimidade da Câmara de o fazer! Explicar o desaparecimento das sortes da Citânia, e o que sabemos é que meia dúzia de sortes existentes na Citânia, entre as quais a do Coutinho, desapareceram desde 1920 a esta parte. Também pena que não tivesse esmiuçado a imensa trafulhice perpetrada quando se refere aos diversos litígios que a partir dessas alturas, com  os quais sob a capa de benemerência se atentou contra os direitos da Confraria e de Areosa.

Não bastassem as questões de dominialidade até o território é posto em causa. Está a Citânia em Areosa? Está em Viana? Além do Aforamento, além do testemunho de Tomás da Costa e  Abel Viana, ouçamos a tradição. Ainda na década de 50 vieram ao mundo dois “castrejos” dos quais, baptizados na Igreja de Vinha, se fez constar, no respectivo assento, que tinham nascido no sítio da Citânia, Freguesia de Areosa. (Devo esta ao Dr. Américo!)

Nos dias de hoje todo o mundo é proprietário no Monte de Santa Luzia. Quando os de Areosa vão às suas propriedades aparecem os do Hotel a dizerem que aquilo é deles. Aparecem os da Confraria a dizer que aquilo é deles. Aparecem os da Câmara (!) a dizer que aquilo é deles. Aparecem os Serviços Florestais (!?) a dizer que aquilo é deles!…

Como está a ressurgir a moda das Festas e Romarias, e nas de Santa Luzia além do 13 de Dezembro também os de Areosa, era tradição ir lá comer o galo no dia seguinte ao Natal e acrescido ao facto de ter havido o culto a Santa Águeda do Monte e à Senhora d’Abadia. Também porque dedicamos o espaço ao Sagrado Coração de Jesus por causa da peste de que os de Viana ainda não se livraram, proponho que, dado os fenómenos paranormais que se verificam naquela montanha, dourada segundo a saudosa Senhora Augusta Alpuim,  se institua aí um dia do ano para celebrar o milagre da multiplicação dos pães…

Vai-te embora Março que me levas a pele e o pelaço!                                                                               

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